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Luciano Cerqueira

Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil; Pesquisador associado do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ) e Doutor no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ

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A carreira de docente no Novo Ensino Médio

Mudanças nas legislações educacionais vão alterar, até 2022, a estrutura do Ensino Médio (EM) na rede pública e na rede privada, transformando consideravelmente o modelo tradicional de escola que conhecemos

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Mudanças nas legislações educacionais vão alterar, até 2022, a estrutura do Ensino Médio (EM) na rede pública e na rede privada, transformando consideravelmente o modelo tradicional de escola que conhecemos. A reforma do EM trouxe novamente a discussão sobre a formação técnica versus a formação intelectual, abriu a possibilidade de serem excluídas disciplinas ligadas às ciências humanas, colocou como obrigatório o ensino de língua portuguesa e matemática nos três anos do EM, dentre outras diretrizes.

Não há dúvidas que o EM precisava passar por uma transformação, pois hoje vivemos em uma sociedade em que as informações (e as transformações) transitam em quantidade e velocidade inimagináveis. Por isso, a escola, principalmente aquela que lida com jovens, precisa estar pronta a modificar-se e a atender as demandas que surgem por conta desta nova sociedade global. 

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Mas, assim como é certo que precisávamos de mudanças, também é certo que estas mudanças deveriam ser elaboradas, debatidas, planejadas por pessoas que estão diretamente ligadas à área e não, por “burocratas”. Com isso, não quero afirmar que devemos enxergar políticos e gestores como inimigos da educação pública, mas também não devemos vê-los como as únicas pessoas capazes de promover as transformações necessárias. Professoras/es, educadores/as, diretores/as, responsáveis e (principalmente) estudantes deveriam ter um papel de destaque numa reforma educacional. Mas, infelizmente, grande parte das pessoas ligadas diretamente ao assunto não foram ouvidas na reforma do EM aprovada no país. 

Com as mudanças aprovadas, o EM passa a focar na especialização dos estudantes, ideia que sempre foi contestada pelas limitações que impõe à formação dos/as adolescentes e pelo açodamento na formação de mão de obra qualificada. A partir da implantação das novas alterações curriculares, a escola pode acabar empurrando os estudantes com menor renda para carreiras de subemprego, enquanto que os estudantes com condições mais favoráveis, digamos assim, ficam na escola e focam naquilo que bem desejam. Os estudantes que permanecerem nas escolas (oriundos de famílias que possuem uma renda mais alta, com pais que cursaram ensino superior etc.) serão aqueles que irão para a universidade. A educação, que tem de ser utilizada como estratégia para redução da desigualdade, vai ajudar a mantê-la e a fomentá-la.
Apesar do peso das mudanças propostas, o prazo adaptativo sugerido pelo governo foi muito curto. As escolas precisam se adaptar à nova realidade.  E os/as docentes também.   Após a reforma, foi criada uma zona “cinzenta”, surgiu uma grande indefinição sobre o perfil do profissional que será responsável pela implementação do novo EM. A reforma trouxe duas novas categorias de profissionais da educação básica: a) profissionais com notório saber, reconhecidos pelos sistemas de ensino para ministrar, exclusivamente na formação técnica e profissional, conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada; b) profissionais graduados com complementação pedagógica (Brasil, BNCC, 2017, Art. 61, IV e V).
A alteração mais significante para a carreira docente é a possibilidade da contratação de profissionais com notório saber. Essa medida desqualifica ainda mais a profissão de professor/a, já extremamente precária, porque, na prática, assume que qualquer pessoa pode dar aula, independente de formação pedagógica. Esta modificação está ligada diretamente, ao itinerário “formação técnica e profissional”, itinerário que deve atrair uma grande parte da juventude mais pobre.

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Os profissionais selecionados deverão ser reconhecidos pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado. Vejam bem, o profissional pode ter, ou não, prática de ensino para dar aulas no EM. Aqui chamo atenção para um detalhe: num país como o nosso, onde muitos municípios ainda são dominados por famílias, não é errado imaginar que essa seria uma ótima oportunidade de beneficiar parentes, amigos, correligionários. 

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Essa mudança abre um precedente perigoso quando vemos que ela permitirá que uma pessoa formada em física, por exemplo, dê aula de matemática. Ambas são da área de exatas, mas quem se graduou em física (sem licenciatura) talvez não esteja capacitado para dar aula de matemática. Essa alteração, infelizmente, está “legalizando” uma prática que já é comum nas escolas (que está errada e que por isso não deveria ser legalizada) e que pode ser uma das causas do desinteresse dos jovens universitários se especializarem em algumas áreas onde hoje já encontramos déficit de docentes. 

 

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Os defensores da ideia dizem que, por exemplo, se tivermos uma aula de matemática dada por um engenheiro (que nunca deu aula) a aula será mais animada para os/as alunos/as do que uma aula 100% abstrata ou teórica. A alegação dos entusiastas da ideia, é que está abertura possibilitará preencher lacunas existentes no ensino médio. A pergunta simples a se fazer é: podemos preencher vaga de professores de matemática com engenheiros/as sem licenciatura? Outro argumento utilizado por estas pessoas é que, com isso, as escolas poderão inserir novos conteúdos no ensino médio para complementar a formação. Se uma escola quiser, ela poderá contratar um bacharel em Direito para lecionar, mesmo que ele (ou ela) nunca tenha passado pela licenciatura. A reforma baseia-se na premissa de que qualquer pessoa que fez graduação está apta a dar aulas. Um enorme erro!  

 

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Além disso, os defensores da ideia afirmam que esta medida trará a possibilidade de termos nas escolas um aumento exponencial de pessoas com “conhecimento popular”, sem diploma. Mais uma medida com vistas a “enriquecer” o conhecimento da juventude. Porém, essa é uma briga que vem de longa data e exige uma melhor reflexão. Já não é de hoje que muitas escolas (e algumas universidades) tentam levar o “conhecimento popular” para dentro de suas salas de aula. Contudo, por que nunca foi possível (pelo menos formalmente) levar as mais diversas populações indígenas (ou quilombolas) e seus profundos conhecimentos sobre ervas medicinais para dentro do espaço escolar? Por que o agricultor do MST não pode falar sobre a sua relação com a terra, nas mais variadas escolas rurais existentes no Brasil? A pergunta é: estas pessoas também terão autorização para transmitir seus conhecimentos tão necessários em outras escolas? A medida pode e parece que vai decidir a quem merece ser dado o título de “notório saber”. Essa possibilidade, mais uma vez, pode se tornar privilégio para poucas pessoas.  

 

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Os defensores destas alterações utilizaram como um dos motivos para a urgência da reforma o desempenho ruim do Brasil em avaliações internacionais realizadas pelo PISA, por meio das quais se constroem a hierarquização entre escolas dentro dos Estados, a hierarquização das escolas no país e entre países, medindo assim, a qualidade da educação. Esse tipo de avaliação está baseado em elementos puramente quantitativos, diretamente alinhados à ideia de meritocracia. Não é crível acreditar que a melhora no desempenho nestas avaliações, com base numa reforma curricular que visa a facilitar as escolhas das disciplinas que os jovens gostam, vá funcionar para melhorar a educação como um todo. Podemos criar uma geração de jovens que, provavelmente, se sairão melhores quando forem avaliados e que terão suas competências e habilidades valorizadas pelo mercado de trabalho formal (e informal), conseguindo trabalho e renda para se manterem. Mas, deve ser esse o único objetivo que a educação deve buscar? Queremos cidadãos melhores ou trabalhadores e trabalhadoras melhores? Não podemos formar os dois?
Ninguém é contra avaliar a “qualidade” da educação, nem mesmo contra o PISA. Porém, temos é de ter o cuidado na hora de avaliar para não avaliarmos coisas diferentes, ou coisas iguais, mas em contextos diferentes. Por isso, usar o argumento de reestruturação do currículo do ensino médio como urgente, tendo como base apenas avaliações pode ser uma alternativa que o piore.  Não vamos avançar (ou avançaremos pouco) com a inserção nas escolas de pessoas com “notório saber”: não ganharão os estudantes e docentes e não avançará a educação como um todo. Além disso, essa medida desobriga o Estado de formar novos profissionais. O que fará a educação obter a qualidade desejada é adotarmos um conjunto de políticas para docentes que atuam na formação, carreira e condições de trabalho dos/as docentes. O Brasil está parado no tempo, enquanto países da América Latina, até com menos recursos que nós, têm avançado em mudanças que visam ao aprimoramento da carreira e à valorização dos docentes, o que se reverte em uma melhora nos resultados educacionais.

 

Precisamos, sim, de mais docentes, mas o fato é que o magistério não consegue atrair os alunos do ensino médio com o melhor desempenho para a docência, os cursos de formação inicial não preparam o futuro professor para os desafios que ele encontrará em sua carreira. Não possuímos uma linguagem comum do que se espera dos docentes brasileiros. Além disso, a carreira docente não está estruturada para incentivar o desenvolvimento de competências essenciais.

Há décadas, passamos por novas transformações – orientadas em grande parte pelo advento da informatização do trabalho – e é claro que a educação, e com ela a estrutura e o currículo do ensino médio, precisava acompanhar esse movimento. É preciso fazer chegar às escolas as transformações que a sociedade experimenta diariamente. As mudanças são, e sempre serão, bem-vindas em um mundo em constante transformação, mas não podemos aceitar e promover uma mudança qualquer. 

Ao fazer a crítica sobre as mudanças propostas pelo MEC (iniciadas no governo Michel Temer) para o EM, não defendo que ele ficasse exatamente como estava, sei que os problemas existiam, e ainda existem. Mas, é preciso que as mudanças avancem no sentido da universalização, readequação da carga horária, criação de dependências dignas para estudantes, professores e professoras, é preciso aumentarmos a quantidade de estudantes e, sim, temos de estar sempre atentos aos conteúdos oferecidos nas escolas num tempo em que temos informações oferecidas em quantidade e qualidade nunca antes vistos. 

 

O último ponto a ser levantado aqui (apenas para reflexão), é o fato de que todas estas mudanças exigem recursos. Nenhuma reforma educacional terá êxito se for feita de forma improvisada (como a contratação de pessoas com notório saber), é preciso alocar recursos para que ela ocorra. No entanto, a Proposta de Emenda à Constituição 55 (PEC 55, conhecida como a PEC do limite de gastos aprovada em 2016), reduziu drasticamente os investimentos em educação. Sendo assim, não tem “mágica”: por conta da redução dos investimentos em educação (com ou sem reforma do EM), o Brasil está condenado a manter a baixa qualidade da educação das crianças por um período, mínimo, de 20 anos.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em: <568 http://basenacionalcomum.mec. gov.br/ imagens/BNCC_publicacao.pdf>. Acesso em 2/06/18.
_______. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada e publicada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: imprensa oficial, 2001.
_________. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação. Secretária de Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da Educação. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
_______. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, fev. 2017.

ESTUDO TÉCNICO. Revisão Orçamentária 2019, Diagnóstico para educação: Possibilidades e perspectivas. Câmara dos Deputados. Brasília, 2018. 

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. Proposta preliminar segunda versão revista, abr. 2016.
_______. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base, 2017.

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