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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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A casa de Clarice Lispector

Clarice Lispector não viveu na favela nem catou lixo para comer. Mas em compensação ganhou a lenda de possuir um casarão inteiro, uma lenda que perdura até hoje

A escritora brasileira Clarice Lispector (Foto: Divulgação/Rocco)
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No café da manhã, conversamos eu e Francêsca sobre Clarice Lispector. E me lembrei da infância pobre da escritora, que a fez compreender a verdade dos livros de Carolina de Jesus. Certo, Clarice Lispector não viveu na favela nem catou lixo para comer. Mas em compensação ganhou a lenda de possuir um casarão inteiro, uma lenda que perdura até hoje. E como toda boa e qualquer lenda, mistura de fato e mentira. Ajuda a construção a imagem da escritora, bela, famosa e festejada. Ninguém imagina a sua imensa pobreza na infância.

Eu já morei naquele casarão da Praça Maciel Pinheiro, 347, no Recife. Morar, modo de dizer. Em 1978, quando ali eu dormia, o sobrado era pensão, um pardieiro de paredes úmidas e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, ele é soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os condenados que depois de um dia fora voltam à prisão. O lugar era segregador e irrespirável.

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Então reflito melhor sobre a pobreza de Clarice Lispector e a impossibilidade de ter ocupado ali, como dona ou inquilina de todo o prédio. Da memória feliz e infeliz da escritora recolho trechos de dois ótimos contos.

Em Felicidade Clandestina (e que título lindo):

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“Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

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Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses”.

Em Restos de Carnaval (outro título muito bonito):

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“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu pouco participava dele. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”

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Numa entrevista para Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti em 1976,Clarice Lispector declarou: “Nós éramos muito pobres e ainda havia doença em casa. E eu era tão alegre, que escondia a dor de ver aquilo tudo”. Do casarão da Maciel Pinheiro, o mais razoável é supor que a escritora e família ocupassem no sobrado apenas uns três cômodos, como chamamos no Recife à divisão de espaço cuja unidade é a medida de um quarto simples. Casa de Clarice Lispector! A lenda veio sendo montada, construída de lapsos, de frases imprecisas, de omissões de memória. E a partir do fato de nesse prédio ter morado a grande escritora, chegamos ao casarão, que todos podem ver como A Casa de Clarice Lispector.

A genial escritora, tão verdadeira, não merece tal lenda.

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