A China tem 30 mil fábricas inteligentes: e onde está o emprego?
Com avanço da IA, governo chinês impulsiona desenvolvimento de novas profissões, programas de trabalho, feiras de emprego e parques de recursos humanos
A imagem das fábricas chinesas que ainda persiste no Ocidente é a de um grande galpão, meio sujo, com centenas de operários trabalhando lado a lado em jornadas intermináveis. Nada mais distante da realidade de um país que, tendo sido a “fábrica do mundo”, hoje conta com cerca de 30 mil plantas inteligentes que combinam os últimos avanços em robótica, big data, internet das coisas e inteligência artificial (IA), com o objetivo de otimizar aquilo que o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT) chama de “a segunda modernização da China”.
De fato, ao contrário do que muitos imaginam, as fábricas chinesas hoje se assemelham a verdadeiros laboratórios: limpas até a exaustão, com pouquíssimos ruídos de máquinas e ainda menos gente circulando. Exemplos disso são os poucos trabalhadores que, diferentemente de outras épocas, hoje transitam pelas plantas automotivas de Chongqing, onde foram produzidos 1,659 milhão de veículos nos primeiros meses de 2025; ou pelos ateliês inteligentes de calçados de Putian, onde, em pouco mais de uma hora, são fabricados modelos personalizados de sapatos, botas e sandálias, de acordo com o gosto de cada cliente.
Nada disso é obra do acaso. A China iniciou esse caminho há uma década e, em 2024, aperfeiçoou o desenvolvimento das fábricas inteligentes (FI) com uma classificação de quatro níveis, conforme a tecnologia e o grau de integração. Segundo esses parâmetros, hoje operam mais de 22 mil fábricas básicas, cerca de 7 mil avançadas, 500 de excelência e apenas 15 atingem a classificação máxima, de pioneiras — abrangendo, no total, mais de 80% dos setores manufatureiros.
“A escala industrial da fabricação de equipamentos inteligentes, software industrial e soluções sistêmicas da China já superou 635,5 bilhões de dólares”, revelou o vice-ministro da Indústria e Tecnologia da Informação, Xin Guobin, na Conferência Mundial de Fabricação Inteligente 2025, realizada em Nanjing.
Segundo um relatório recente sobre FI, divulgado pelo estatal Diário do Povo, os ciclos de desenvolvimento industrial foram reduzidos em quase 30%, a eficiência produtiva aumentou mais de 22%, as taxas de defeitos caíram pela metade e as emissões de carbono diminuíram cerca de 20%.
Reforma trabalhista - Nesse cenário, o principal alerta levantado pela nova realidade tecnológica/produtiva talvez possa ser sintetizado pela frase do escritor e historiador israelense Yuval Noah Harari: “Poderíamos chegar a um ponto em que o sistema econômico veja milhões de pessoas como completamente inúteis”.
Para evitar isso, a China já não contabiliza quantos milhões de trabalhadores foram — ou estão sendo — deixados para trás pelas FI. Essa fase ficou no passado. A resposta atual é uma ofensiva cirúrgica que inclui mais formação profissional e um redesenho total do mercado de recursos humanos.
Tudo isso ocorre em um contexto que, visto de fora, é bastante peculiar. Desde o início do 14º Plano Quinquenal (2021–2025), o setor de serviços de emprego cresce a “taxas chinesas” e atende anualmente cerca de 300 milhões de trabalhadores e mais de 50 milhões de empregadores.
Com a criação — em âmbito nacional — de 36 grandes feiras estatais de emprego e 29 Parques Industriais de Serviços de Recursos Humanos (PISRH), o governo decidiu direcionar seus esforços às FI, à economia digital e aos serviços modernos, “com o objetivo de reduzir a lacuna entre a oferta de talentos e as necessidades industriais, enfrentando a falta de mão de obra em setores-chave”, segundo a agência Xinhua.
A China conta hoje com mais de 220 milhões de trabalhadores qualificados, incluindo 71 milhões altamente qualificados. Trata-se de uma reserva de talentos considerada essencial pelo governo para sustentar um nível elevado de autossuficiência e força em ciência, tecnologia e modernização industrial. De Pequim, o recado é claro: não se trata apenas de adaptar-se ao futuro de fábricas que “pensam sozinhas”. A meta é garantir que essas fábricas — cada vez mais inteligentes e autônomas — continuem precisando de mãos e cérebros humanos para projetá-las, consertá-las e aperfeiçoá-las.
Diante disso, em apenas cinco anos, a China reconheceu 72 novas profissões, com títulos e doutorados que há uma década não existiam nem na imaginação dos mais ousados. É uma corrida contra o tempo para reconverter o mercado de trabalho e preservar uma das grandes obsessões governamentais: manter o desemprego urbano perto dos 5,1% registrados em novembro.
Para atingir essa meta, nos últimos cinco anos foram destinados mais de 66 bilhões de dólares em subsídios ao emprego e outros 18 bilhões em reembolsos trabalhistas. Não se trata de um gesto social, mas de uma espécie de seguro de estabilidade — um amortecedor político para evitar que a transformação tecnológica destrua tudo pela frente, como ameaça ocorrer em outros países.
A segunda modernização chinesa já não depende apenas da capacidade de produzir. Depende de formar, reinventar e reter talentos, sobretudo entre os mais jovens. Enquanto grande parte do mundo se pergunta o que fazer com as pessoas que as máquinas começam a substituir, a China parece ter tomado uma decisão mais simples: acionar todos os motores ao mesmo tempo, com novas profissões, subsídios bilionários, parques laborais, feiras de talentos e um exército de pessoas dispostas a competir na nova economia digitalizada.
Em um contexto internacional em que as FI estão reconfigurando todo o sistema produtivo, a China parece apontar um caminho alternativo — uma inteligência diferente, que busca evitar que o emprego de centenas de milhões de pessoas seja o primeiro preço a ser pago.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




