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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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A cidade em um tempo de peste

A história nos ensina que as epidemias são momentos reveladores, mais do que transformadores sociais

Alegoria do mau governo (1338), de Ambrogio Lorenzetti
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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A cidade assolada pela peste, atravessada em toda a sua extensão por hierarquia, vigilância, observação, escrita; a cidade imobilizada pelo funcionamento de um poder extensivo que controla de forma distinta todos os corpos individuais - essa é a utopia de uma cidade perfeitamente governada.

– Michel Foucault, Vigiar  e Punir

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Enfocando, como seria de se esperar, o Declínio e a Queda do Império Americano, uma hipótese de trabalho do historiador Kyle Harper vem sendo objeto de intenso e sério debate acadêmico. Segundo essa hipótese, os vírus e as pandemias - em especial a peste justiniana do século VI - levaram ao fim do Império Romano. 

Bem, a história, na verdade, nos diz que as epidemias são momentos reveladores, mais do que transformadores sociais. 

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Patrick Boucheron, historiador de primeira linha e professor no estimado College de France, traz uma perspectiva muito interessante. Por sinal, antes da eclosão do Covid-19, ele estava prestes a dar início a um seminário sobre  a Peste Negra medieval.

A visão de Boucheron sobre o Decameron de Boccaccio, escrito em 1350 e tendo como personagens um grupo de jovens aristocratas florentinos que fugiram para o campo toscano e lá passavam o tempo contando histórias, enfoca a natureza da peste  como um "horrível começo" que rompe os vínculos sociais, provoca um pânico funerário e deixa a todos se debatendo na anomia. 

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Ele, então, traça um paralelo histórico com os escritos de Tucídides sobre a peste de Atenas, ocorrida no verão de 430 A.C. Levando o tema até o limite máximo, nos arriscaríamos a afirmar que a literatura ocidental começa com uma peste - descrita no Livro 1 da Ilíada de Homero.

A descrição de Tucídides  da Grande Peste - na verdade, a febre tifóide - é também um tour de force literário. No cenário de hoje, isso é mais relevante que a controvérsia da "cilada de Tucídides" - e é igualmente inútil comparar o contexto da Atenas antiga com o da atual guerra híbrida entre Estados Unidos e China. 

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Tanto Sócrates quanto Tucídides, por sinal, sobreviveram à peste. Ambos eram rijos e haviam adquirido imunidade por terem antes sido expostos à febre tifóide. Péricles, o primeiro cidadão de Atenas, não teve tanta sorte: ele morreu aos 66 anos, vítima da peste. 

A cidade com medo

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Boucheron escreveu um livro imensamente interessante, Conjurer la Peur (Conjurar o Medo) no qual ele conta a história de Siena, alguns anos antes da Peste Negra, em 1338. Essa é a Siena retratada por Ambrogio Lorenzetti nas paredes do Palazzo Pubblico – um dos afrescos alegóricos mais espetaculares de toda a história.

Em seu livro, Boucheron escreve sobre o medo político antes de ele ser engolfado pelo medo biológico. Nada poderia ser mais contemporâneo. 

Na Alegoria do Mau Governo, de Lorenzetti, o tribunal da má justiça é presidido por um demônio que segura um cálice envenenado (que hoje seria o "veneno coroado", o coronavírus). Os olhos do demônio são vesgos e um de seus pés pisa sobre os chifres de um bode. Flutuando sobre sua cabeça vemos a Avareza, o Orgulho e a Vanglória (compare-se com os "líderes" políticos contemporâneos). A Guerra, a Traição e a Fúria sentam-se à sua esquerda (o Deep State americano?) e a Discórdia, a Fraude e a Crueldade à sua direita (a financialização do capitalismo de cassino?) A Justiça está acorrentada e sua balança caiu por terra. E por falar em uma alegoria da "comunidade internacional"...

Boucheron dá especial atenção à cidade, tal como retratada por Lorenzetti. Ela é uma  cidade em guerra - o oposto da cidade harmoniosa da Alegoria do Bom Governo. O ponto crucial é que a cidade está despovoada - de forma muito semelhante a nossas cidades hoje em quarentena. Apenas homens armados circulam pelas ruas e, como sugere Boucheron: "Imaginamos que, por trás das paredes, as pessoas estejam morrendo". Essa imagem, então, em nada mudou - ruas desertas, um bom número de idosos morrendo em silêncio em suas casas.

Boucheron, então, faz uma surpreendente comparação com o frontispício do Leviatã, de Hobbes, publicado em 1651: "Aqui, também, há uma cidade despovoada pela epidemia. Sabemos disso porque, nas bordas da imagem, identificamos duas silhuetas com bicos de pássaros, que representam os médicos da peste", enquanto os moradores da cidade foram sugados para o alto, inflando a figura do monstro estatal, o Leviatã, muito confiante no medo que inspira.

A conclusão de Boucheron é que o estado é sempre capaz de extrair uma resignação e uma obediência absolutas da população. "O que é complicado é que, embora tudo o que dizemos sobre a sociedade de vigilância seja aterrorizante e verdadeiro, o estado consegue essa obediência em nome de sua função mais inquestionável, que é proteger a população contra a morte insidiosa. É isso que muitos estudos sérios definem como "biolegitimidade". 

E hoje eu acrescentaria que essa biolegitimidade é apoiada por uma servidão voluntária generalizada.

A Era da Hafefobia 

É possível dizer que Michel Foucault foi o primeiro cartógrafo moderno da sociedade da vigilância derivada do Panóptico. 

E, então, temos Gilles Deleuze. Em 1978, Foucault fez a a famosa declaração de que "talvez, um dia, este século venha a ser chamado de o século deleuziano". 

Bem, Deleuze, na verdade, pertence mais ao século XXI que ao século XX. Ele foi mais longe que qualquer outro no estudo das sociedades de controle - nas quais o controle não provém do centro nem do topo, mas flui através da micro-vigilância, chegando a  despertar nas pessoas o desejo de serem disciplinadas e monitoradas: aqui também, a servidão voluntária.   

Judith Butler, referindo-se ao extraordinário Necropolítica, de Achille Mbembe, o crítico teórico residente na África do Sul, observa que "ele retoma a partir do ponto em que Foucault parou, rastreando a sobrevida letal do poder soberano, que sujeita populações inteiras àquilo que Fanon chamou de 'a zona do não-ser' ".

Grande parte do debate intelectual que temos pela frente, portanto, baseando-nos em Fanon, Foucault, Deleuze, Mbembe e outros, terá, necessariamente, que enfocar a biopolítica e o estado de exceção generalizado - que, como Giorgio Agamben demonstrou, referindo-se ao Planeta Quarentena, está agora completamente normalizado. 

Não conseguiríamos sequer vislumbrar as consequências da ruptura antropológica causada pelo Covid-19. Os sociólogos, de sua parte, já estão discutindo o "distanciamento social" como uma abstração definida e vivida em termos bastante desiguais. Eles estão discutindo as razões pelas quais os poderes constituídos escolheram um vocabulário marcial ("lockdown", que significa o confinamento de prisioneiros em celas, ou outras situações de emergência que exijam o isolamento de pessoas em locais confinados)  em vez de formas de mobilização guiadas por um projeto coletivo.

E isso nos levará a estudos mais profundos da Era da Hafefobia: nossa atual situação de medo generalizado do contato físico. Os historiadores tentarão analisar esse fenômeno paralelamente à maneira como as fobias sociais se desenvolveram ao longo dos séculos.      

Não resta dúvida de que o mapeamento exaustivo de Foucault deve ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas usadas pelos poderes constituídos para gerir a vida e a morte das populações. Nos anos cruciais de 1975 e 1976, quando ele publicou Vigiar e Punir (citado na epígrafe deste ensaio) e o primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault, baseando-se em seu conceito de "biopolítica", descreveu a transição de uma "sociedade soberana" para uma "sociedade disciplinar".

Sua principal conclusão é que as técnicas do governo biopolítico estenderam-se muito além das esferas legais e punitivas, e que agora elas invadem todo o espectro, alojando-se até mesmo dentro de nossos corpos individuais. 

O Covid-19 vem colocando frente a nós um imenso paradoxo biopolítico. Quando os poderes estabelecidos agem como se estivessem nos protegendo de uma doença perigosa, eles estão carimbando sua própria definição de comunidade, que toma por base a imunidade. Ao mesmo tempo, eles têm o poder de se decidir pelo sacrifício de parte da comunidade (idosos que são deixados morrer, as vítimas da crise econômica) em benefício de sua própria ideia de soberania. 

O estado de exceção ao qual está submetida boa parte do mundo agora representa a normalização desse insuportável paradoxo.

Prisão domiciliar

Como, então, Foucault veria o Covid-19? Ele diria que essa epidemia radicaliza as técnicas de biopolítica aplicadas a um território nacional, inscrevendo-as em uma anatomia política aplicada a cada corpo individual. É assim que uma epidemia estende a toda a população medidas políticas de "imunização" que antes só se aplicavam - de forma violenta - àqueles considerados "estrangeiros", dentro e fora do território nacional soberano.  

É irrelevante se o Sars-Covid-2 é orgânico, uma bio-arma ou, ao estilo das teorias da conspiração da CIA, parte de um plano de dominação do mundo. O que vem ocorrendo na vida real é que o vírus reproduz, materializa, amplia e intensifica -  para centenas de milhões de pessoas - as formas dominantes de gerenciamento biopolítico e necropolítico já em vigor. O vírus é o nosso espelho. Nós somos o que a epidemia diz que somos, e como decidimos enfrentá-la.

E, em condições de turbulência tão extrema, como observou o filósofo Paul Preciado, acabamos por atingir uma nova fronteira da necropolítica - principalmente no Ocidente.

O novo território da política de fronteiras que o Ocidente vem testando há anos com "O Outro"- negros, muçulmanos, pobres - agora começa em casa. É como se Lesbos, a principal ilha de entrada para os refugiados do Mediterrâneo Leste vindos da Turquia, agora começasse no hall de entrada de cada apartamento ocidental. 

Com a vigência de um distanciamento social amplo, a nova fronteira é a pele de cada um de nós. Os migrantes e os refugiados antes eram vistos como um vírus, e só mereciam confinamento e imobilização.  Mas agora essas políticas se aplicam a populações inteiras. Centros de detenção - salas de espera perpétua que abolem os direitos humanos e a cidadania - agora são centros de detenção internos a nossas próprias casas. 

Não é de admirar que o Ocidente liberal tenha sido mergulhado em um estado de choque e pavor. 

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