A compressão deliberada da economia brasileira
Um país mantido artificialmente abaixo de seu potencial pela combinação de metas irreais e juros excessivos
A discussão recente entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central não é um simples desacordo técnico. Em economia, quase nunca se trata disso. O que está em jogo é a determinação de quanta energia se permite que o país produza e de quão forte será a compressão destinada a impedir que essa energia se manifeste. Em outras palavras, trata-se de saber quem define a intensidade com que o Brasil pode respirar.
O governo apresentou dados claros: a atividade econômica perde tração, o mercado de trabalho desacelera, os núcleos de inflação cedem e as expectativas convergem para a meta. Nesse ambiente, a manutenção da Selic em 15% é uma dose de restrição superior ao necessário para a estabilidade dos preços. A Fazenda está correta ao afirmar que há espaço para cortes. Não se trata de otimismo, mas de leitura responsável da conjuntura.
O Banco Central, entretanto, sustenta que a Selic deve permanecer elevada por longo período. A justificativa formal é a necessidade de reforçar a trajetória da inflação rumo à meta. A justificativa real é outra: a taxa de juros, no Brasil, deixou de atuar sobre preços e passou a atuar sobre política. Ela condiciona o ritmo do crescimento, determina quem se beneficia da renda nacional e regula o alcance das políticas do governo. A Selic elevada protege interesses específicos, e é por isso que o mercado, o Banco Central e seus arautos na imprensa se alinham tão prontamente em sua defesa.
O debate, porém, não se limita aos juros. A raiz do problema está na própria meta de inflação. Fixou-se artificialmente em três por cento uma economia que, pelas suas características estruturais, poderia operar com estabilidade plena em torno de quatro e meio ou cinco por cento. Ao reduzir a meta a esse nível, criou-se uma compressão permanente sobre toda a atividade produtiva. Trata-se de uma escolha política travestida de técnica.
Essa compressão pode ser expressa em decibéis econômicos. Se considerarmos 5% como meta compatível com o funcionamento normal de um país de renda média e 3% como a meta imposta, o resultado é uma compressão estrutural de pouco mais de dois decibéis. Antes mesmo de definir a taxa de juros, a economia brasileira já nasce abafada.
Quando se adiciona a esse abafamento a Selic de 15%, o quadro se agrava. Se tomarmos 8% como um nível neutro de juros reais para um país emergente, a taxa atual representa algo em torno de cinco ou seis decibéis adicionais de restrição. Ao somar a compressão da meta com a compressão da Selic, chegamos a quase oito decibéis, intensidade equivalente a multiplicar por seis a força do freio aplicado ao crescimento. É compressão demais para qualquer economia que pretenda gerar emprego, renda e investimento.
Não se trata, portanto, de discutir se a Selic está um pouco acima ou um pouco abaixo do ideal. Trata-se de reconhecer que a política monetária brasileira opera sob uma lógica de sufocamento contínuo. A meta baixa cria o estrangulamento estrutural; os juros altos ampliam esse estrangulamento até níveis incompatíveis com o desenvolvimento. O resultado é um país mantido abaixo de suas possibilidades, não por necessidade técnica, mas por conveniência política e financeira.
Em resumo, a inflação já está em um patamar que permite cortes; quem impede a redução dos juros não é a realidade, mas o desenho institucional que privilegia a compressão. A economia brasileira não está aquecida; está amortecida. O que a impede de crescer não é o risco inflacionário, mas a intensidade excessiva das amarras que lhe impuseram. Enquanto a meta permanecer artificialmente baixa e a Selic for tratada como instrumento de contenção do governo, e não da inflação, o país continuará respirando por aparelhos.
Posfácio
A discussão sobre a intensidade da política monetária brasileira ganhou novo fôlego à medida que se tornaram mais claros os mecanismos institucionais que comprimem a economia. A manutenção de uma meta de inflação artificialmente reduzida e a escolha de uma taxa Selic acima das necessidades reais do combate à inflação produzem um ambiente em que a atividade econômica opera como se estivesse submetida a um limitador permanente. A métrica em decibéis econômicos evidencia algo que, à primeira vista, não aparece nos números tradicionais: o país convive com camadas sobrepostas de restrição, cujo objetivo ultrapassa a estabilidade de preços.
É digno de nota que, ao longo da história recente, metas de inflação nunca foram neutras. Desde o início do regime de metas, adotou-se no Brasil uma referência mais baixa do que a sugerida pelo comportamento da economia real. A prática consolidou-se a tal ponto que a sociedade passou a enxergar essa referência como se fosse natural quando, na verdade, ela deriva de uma escolha política tomada em um momento particular e jamais revisitada com rigor técnico. A compressão decorrente dessa escolha acumulou-se ao longo dos anos e moldou a posição do país no cenário internacional, limitando nossa capacidade de investir, inovar e elevar a produtividade.
O debate atual revela uma dinâmica semelhante. O Banco Central se aferra à taxa de juros como instrumento primário, ainda que os indicadores mostrem desaceleração da economia. Argumenta-se que a credibilidade exige parcimônia, mas a credibilidade não pode ser confundida com paralisia. Credibilidade nasce do equilíbrio entre metas e meios, jamais da insistência em um método que já não produz os efeitos desejados. A política monetária, quando se transforma em obstáculo ao crescimento sem ganho correspondente em estabilidade, converte-se em uma política de transferência de renda, e não em um mecanismo de proteção do poder de compra.
Nesse ponto, a métrica em decibéis oferece clareza adicional. Ao traduzir níveis econômicos em intensidades comparáveis, evidencia-se que a meta baixa e a Selic elevada compõem um sistema de travas cumulativas. Esse enquadramento permite enxergar o processo como um continuum, e não como decisões isoladas. A economia brasileira não responde apenas ao número da taxa básica: ela responde à combinação de parâmetros que, juntos, definem o quanto lhe é permitido avançar.
A reflexão final que proponho ao leitor é simples: políticas econômicas são escolhas estruturais. Escolhas podem ser corrigidas. A compressão atual não resulta de fatalidade, mas de um desenho que pode ser repensado. Nada impede o país de adotar metas compatíveis com sua realidade, calibrar juros com parcimônia e reorganizar os instrumentos de política econômica de forma a permitir crescimento sustentado. O Brasil não precisa continuar funcionando sob intensidade restritiva superior à necessária. Basta ajustar o parâmetro inicial.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

