A crise hegemônica do século XXI
A crise hegemônica está diretamente ligada ao neoliberalismo, diz Emir Sader
O século XXI é marcado por uma grande disputa hegemônica. Ao longo do século XX houve uma transição da hegemonia britânica para a hegemonia norte-americana no mundo. Contudo, esta, como foi afirmado, teve de coexistir com a União Soviética, com a qual estabeleceu um equilíbrio, característico da chamada Guerra Fria.
O fim da Guerra Fria deveu-se ao fim da URSS e do campo socialista. Ao qual foi sucedido um período – que se revelou curto – de hegemonia mundial de uma única potência – os Estados Unidos.
A ilusão de que o mundo voltaria a um cenário semelhante ao do século XIX, com apenas uma grande potência no mundo.
Um polo caracterizado não só pela representação de diferentes continentes: América Latina, Ásia e África. Mas também pelas posições comuns dos países: por um mundo multipolar e contra a unipolaridade defendida pelos Estados Unidos. E pela oposição ao modelo econômico neoliberal, assumido pelos Estados Unidos e pelo seu bloco.
A proposta dos Brics inclui a desdolarização das trocas entre países de forma bilateral, propondo a criação de uma nova moeda, os Brics, como forma de promover a desdolarização.
Configura-se assim a disputa hegemônica que certamente continuará, pelo menos, ao longo da primeira metade do século XXI. Todos os continentes estão envolvidos nesta disputa, de uma forma ou de outra.
No período histórico anterior, o eixo da economia estava nos grandes grupos monopolistas industriais, em grande parte norte-americanos. Foi um período marcado pela hegemonia de um setor produtivo, onde a indústria automobilística teve papel predominante.
A transição desse período para aquele marcado pela hegemonia do modelo neoliberal teve a declaração típica do novo período de George Bush, de que o Estado deixou de ser uma solução e se tornou um problema. A criminalização do Estado tornou-se uma questão central da disputa ideológica do novo período.
O Estado, que foi fator de organização da hegemonia em diversos países, tornou-se objeto de críticas, com a promoção da centralidade do mercado. A comercialização característica do neoliberalismo produziu uma gigantesca crise de hegemonia, à escala global e em cada um dos países.
A crise hegemônica na América Latina - dois casos na América Latina servem como exemplos contrastantes do fenômeno da crise hegemônica do século XXI. Na Argentina, o próprio peronismo passou a aderir a uma política neoliberal, com o governo de Carlos Menem, na década de 1990. Isso ocorreu devido à política de paridade da moeda nacional com o dólar, além das privatizações de estatais.
A política de paridade alcançou a estabilidade monetária, aumentando simultaneamente o poder de compra da população de forma repentina e radical. Este mecanismo artificial promoveu a estabilidade monetária, com a correspondente estabilidade política. Nem mesmo os governos de esquerda ousaram acabar com a paridade, pelos efeitos negativos que teria no poder de compra da população.
A crise hegemônica do país alcançou aparente solução, o que lhe conferiu estabilidade política com a década do governo de Carlos Menem. Acumulou-se um gigantesco défice público, que explodiu nas mãos do Partido Radical, que tentava acabar com a paridade.
Da noite para o dia, o que era uma paridade de um por um com o dólar tornou-se quatro por um. Aqueles que acreditavam ter 200 dólares com o seu depósito de 200 unidades da moeda nacional, passaram, da noite para o dia, a ter um quarto do que supunham ter.
As pessoas, especialmente a classe média, saíram para atacar violentamente os bancos. A crise política fez com que o país tivesse quatro presidentes sucessivos numa semana.
Foi um momento que determinou a crise de confiança nos bancos, elemento importante da crise hegemônica na Argentina.
O peronismo, que tinha sido um fator político de estabilidade do país, entrou numa crise, da qual saiu para um novo período, o dos governos Kirchner, exatamente porque implementaram políticas antineoliberais.
Esta solução para a crise hegemônica existiu enquanto vigoravam as políticas antineoliberais no país. A devolução da direção ao governo inclui também um novo acordo com o FMI e políticas neoliberais.
Confirmando assim que a fonte das crises hegemônicas contemporâneas é o neoliberalismo, que fragmenta as relações sociais, que enfraquece o Estado, que é a comercialização da sociedade.
A divisão interna do peronismo aumentou a crise hegemônica na sociedade, que se transformou na força hegemônica predominante no país. A tal ponto que surgiu uma força de extrema direita, prometendo políticas que apenas aprofundaram a crise hegemônica na Argentina.
É uma disputa aberta, com vários candidatos, que refletem a fragmentação ainda maior do campo político argentino.
O Brasil seguiu um caminho diferente para enfrentar sua crise hegemônica. O PT, força mais ou menos correspondente ao peronismo, conseguiu manter a sua unidade interna, expressa na liderança de Lula.
O golpe, que tirou Dilma Rousseff do governo, reintroduziu uma grande crise hegemônica no Brasil. Foram 6 anos de governos ilegítimos, que romperam com o processo democrático no Brasil, com a correspondente retomada do neoliberalismo como política econômica.
O PT foi uma vítima privilegiada do colapso da democracia. Ele foi afastado do governo por meio de um golpe na mídia legal. O próprio Lula foi preso, condenado e impedido de concorrer à presidência do Brasil.
O país nunca esteve tão fragmentado. Até que o mesmo juiz que participou ativamente no golpe contra Dilma Rousseff e na prisão de Lula, a declarou inocente, ao mesmo tempo que não só recuperou os seus direitos políticos, como foi eleito, pela terceira vez, presidente do Brasil.
Tudo isto foi possível porque o governo do PT abandonou o neoliberalismo e implementou uma política económica antineoliberal. No primeiro ano do terceiro mandato, Lula conseguiu o apoio de 60% da população.
Isso não significa que a crise hegemônica tenha sido definitivamente superada no Brasil. Mas permite-nos estabelecer, de forma contundente, a ligação entre o neoliberalismo e a crise hegemônica.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

