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Luiz Eduardo Melin

Professor da PUC-Rio; Economista

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A Ditadura Como Cenário, Não Tema

"O Agente Secreto" não é um filme “político” em sentido estrito, nem uma obra de protesto. É algo mais sutil

Cena do filme "O Agente Secreto" (Foto: Cena do filme 'O Agente Secreto'  / Divulgação)

Como, de modo atípico para mim, assisti "O Agente Secreto" em suas primeiras semanas de exibição, vários amigos vêm pedindo que lhes dê a minha impressão do filme.

Assim como "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, o filme de Kleber Mendonça Filho se passa na década de 1970, durante a ditadura empresarial-militar brasileira. A semelhança entre as duas obras, porém, termina aí. Enquanto o filme de Walter Salles faz da repressão política o seu objeto, "O Agente Secreto" opera numa chave muito distinta – e essa diferença merece ser realçada para que se possa melhor apreciar o que cada filme oferece.

Duas abordagens, dois cinemas

O enredo de "Ainda Estou Aqui" se estrutura em torno das consequências diretas da repressão política sobre indivíduos e famílias. O filme de Walter Salles identifica com clareza os motivos políticos da perseguição a seu protagonista e aponta sem hesitação os responsáveis – incluindo o envolvimento explícito do Exército Brasileiro. Ele revela como ideias, opiniões e até práticas humanitárias – como oferecer ajuda às vítimas da violência estatal – foram sistematicamente criminalizadas e perseguidas.

"O Agente Secreto", por outro lado, utiliza a ditadura e o clima de repressão como pano de fundo, não como sua verdadeira temática. O protagonista interpretado por Wagner Moura não é um militante político, nem propriamente um esquerdista, ou mesmo um dissidente. Seu drama pessoal não decorre diretamente de suas convicções ideológicas, mas de uma vingança particular: um empresário inescrupuloso contrata criminosos para persegui-lo e eliminá-lo, motivado por uma animosidade genérica, cujas razões específicas permanecem nebulosas, talvez deliberadamente.

Não há dúvida de que o tom de arbitrariedade e violência policial que permeia a narrativa é inseparável do regime de exceção vigente na época. Contudo, o filme não se ocupa em descrever ou explicar as características históricas daquele momento. A impunidade com que agentes policiais locais cometem homicídios e agressões, embora potencializada pela ditadura, não é exclusividade daquele período – ocorria antes e, certamente, continuou ocorrendo depois.

"O Agente Secreto" não é, portanto, um filme “político” em sentido estrito, nem uma obra de protesto. É algo mais sutil e perturbador: um retrato de como a crueldade banalizada se entrelaça ao tecido social, nos termos permitidos pelo regime vigente.

Uma linguagem própria

Se do ponto de vista temático os dois filmes divergem radicalmente, é no terreno da linguagem cinematográfica que "O Agente Secreto" revela sua real ambição. Enquanto "Ainda Estou Aqui" adota uma estrutura narrativa hollywoodiana mais convencional – eficaz, mas previsível –, o filme de Kleber Mendonça Filho ousa em múltiplas frentes.

A estratégia narrativa é sofisticada: o sequenciamento não linear, o uso expressivo da câmera e a incorporação de elementos semicômicos de fantasia ou surrealismo (como os tubarões e a “perna peluda”) demonstram um grau de criatividade e invenção raramente visto no cinema brasileiro recente.

Há ecos inconfundíveis da influência estilística de Tarantino na violência alegórica e nos momentos de humor negro. Os elementos oníricos remetem a Fellini, enquanto a progressão desapressada rumo a um inexorável desfecho violento evoca diretamente "Profissão: Repórter", de Antonioni.

O filme se move pelo enredo com notável confiança, sem açodamentos. Há uma disposição rara de parar para saborear momentos bizarros de comédia, erotismo ou emoção individual, construindo um trajeto sinuoso até o clímax final.

Visual e dramaticamente, é uma obra soberba, que demonstra maturidade autoral e domínio técnico. A participação de Udo Kier como um alfaiate alemão perturbado merece destaque especial – uma performance contundente que realça e se integra organicamente ao tom geral da obra.

Um Filme de Personagens

Espectadores que chegarem a "O Agente Secreto" esperando as fórmulas convencionais do “filme de ação” sairão frustrados ou impacientes. Esta não é uma obra que se enquadra facilmente em gêneros comerciais. É um filme mais novelesco, literário, à sua maneira – um cinema de personagens que estabelece seu eixo em torno da atuação complexa e simpática de Wagner Moura.

Mas, acima de tudo, "O Agente Secreto" funciona como plataforma brilhante para retratar algo raramente capturado com tanta sutileza: como a indiferença humana e a maldade cotidiana se entretecem de forma orgânica e quase imperceptível com os afetos e o desamparo das vidas de todos. Não há costuras visíveis nessa tapeçaria de crueldade e ternura – e essa continuidade perturbadora entre o ordinário e o horrendo existe tanto durante quanto fora dos regimes de exceção.

Não é um filme fácil, nem, ao que parece, pretende ser. Exige paciência, disposição para o inusitado e abertura para uma linguagem cinematográfica que recusa simplificações.

Mas para quem estiver disposto a aceitá-lo em seus termos, "O Agente Secreto" oferece uma experiência cinematográfica genuinamente autoral, que expande os limites do que esperamos do cinema brasileiro contemporâneo.

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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.