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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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A ditadura veste toga

A ditadura togada compõe as suas ações e mobiliza os seus instrumentos através de um mal-acabado e nefasto medievalismo judicial associado ao discurso laudatório da grande figura heroica, o Condottieri, o Duce, o Führer, figura que hoje veste toga

Constituição Justiça (Foto: Roberto Bueno)
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Já vivemos dias em que as ditaduras trajaram diversos tons de verde, mas nunca o preto. Já vestiram estranhas armaduras, mas sempre, embora sob diversos matizes, foram violentas e violentadoras. A ditadura conheceu diversas formas de aparição, mas sempre procurando fugir à sua identidade, procurando fontes de legitimidade na criação de recursos teóricos para os quais os intelectuais venais de plantão não hesitaram em contribuir sob a devida paga. As falsas narrativas, sem embargo, tem data de validade, malgrado, à partida, não as conheçamos.

Talvez a superlativa fonte de incompreensão pública sobre a existência de uma ditadura togada é a aparente respeitabilidade e legitimidade de que desfruta, mas que também carrega a contradição já proposta em outros termos por Aristóteles acerca da existência concomitante da tirania e uma ordem legal. Uma resposta contemporânea para esta aparente incongruência é oferecida por Michael Stolleis em sua análise das entranhas do nacional-socialismo alemão ao sustentar que ainda mesmo nos piores regimes subsistem nichos de ordem ou ilhas de calmaria, vale dizer, que há mesmo esferas do direito em que "[...] procedures continue to be "just" and "lawful". Este é o cenário ideal de aparência de normalidade que interessa extremamente à ditadura togada mas sobretudo ao sistema que a controla. Esta é a face pública que o sistema apresenta para seduzir e persuadir a sociedade de que a vida segue o seu curso ordinário, e o faz à luz da complacência da elite e do parlamento que aproveitam do sistema e alimenta pavimentando historicamente o caminho para regimes autoritários.

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A ditadura togada não se apresenta publicamente em sua condição essencial de absolutismo judicial, senão que utiliza das artimanhas típicas da criatura que espreita a sua presa. É preciso aproximar-se da presa sem permitir que esta suspeite do risco iminente. É preciso transmitir confiança à presa, e neste sentido a descrição da falsa identificação do caçador com a sua presa realizada por Elias Canetti é esclarecedora sobre a estratégia: "Eu sou igual a você; sou você, e você pode deixar que eu me aproxime". Mas, eis que, ingenuamente autorizada a aproximação, ao primeiro toque, a inviabilização da sobrevida da presa está colocada. O mundo togado vem operando sob este véu de legitimidade similar a artimanha do caçador, que utiliza de eficiente cortina de fumaça ou fachada de valores que lhe permite aproximar-se de sua presa de forma eficiente para que a captura seja irresistível.

A ditadura togada compactua politicamente e sustenta juridicamente o Estado de exceção em que a economia triunfa sobre a Constituição através da mobilização das forças parlamentares prostradas ao seu serviço. Os homens togados se comportam como lordes, surfam acima do bem e do mal, figuras a quem a lei não se aplica. A toga posiciona-se para além do alcance dos homens ordinários – os reais titulares do poder político –, e o sistema teima reiteradas vezes em ignorar e atentar contra esta hierarquia democrático-republicana. Os ditadores togados se portam como lordes e componentes de uma inatingível e arrogante casa aristocrática situada para além da legalidade. Agem como soberanos, mas destituídos da virtude foucaultiana da moderação e autocontenção no exercício do poder, indispensável para quem exerça as altas funções institucionais típicas das atividades judiciais, cuja competência alcança a contenção das forças dispostas a realizar a tomada do poder (Machtübernahme) fora da previsão legislativa. Malgrado este cenário, hoje é corrente a preocupação com a reedição da ditadura militar e o Estado de exceção que ela suporia. Olhar equivocado, avaliação errônea, ação tardia. O modelo já foi instalado, embora sob nova coloração.

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Quando o juiz Sérgio Moro desrespeitou a norma constitucional que reconhece a exclusiva competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para conhecer e investigar causas que envolvam a Presidência da República e, agravante, divulgou gravações telefônicas que envolviam a Presidência da República, Moro nada mais fez do que violar a Constituição Federal em praça pública à luz do dia. Isto demonstra com clareza meridiana o fato da sobreposição do voluntarismo judicial em desfavor da norma constitucional democraticamente constituída em seu momento. É comprovável que a conduta judicial de Moro foi ainda mais grave do que a de magistrados da Alemanha nacional-socialista, pois ali o ordenamento jurídico e o regime político amparavam o voluntarismo (em última medida sustentado na vontade do Führer), mas aqui, de forma alguma, a isto o ordenamento jurídico claramente se opõe e a Constituição veda.

Em face da violação em causa foi notória a omissão e apequenamento do STF que logo surtiu gravíssimas repercussões políticas. O perfil da Corte é político, algo absolutamente perceptível no momento histórico brasileiro de efetivação do golpe de Estado de 2015/2016 em que ela omitiu-se e, assim, apenas reforçou as sucessivas violações praticadas. Isto apenas confirma uma vez mais a correção da leitura histórica de Michael Stolleis para a qual o STF preferiu fechar os olhos, ou seja, que "History has shown that in the absence of an enforceable and independent supervisionary authority, the rights of citizens and the rules of public law as a whole are constantly in danger of being violated".

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As instituições brasileiras, do conjunto de tribunais superiores ao STF passando pelo conjunto de corregedorias constituem este cenário desértico de controle de poderes e punição de excessos e abusos vários, até alcançar a sua vexatória e lapidar manifestação da conhecida decisão do TRF da 4ª Região em que foi reconhecido o Estado de exceção implicitamente, pois sustentava a Corte, sempre e quando excepcionais fossem as circunstâncias, também excepcionais deveriam ser as medidas judiciais requeridas.

Hoje a preocupação com a ditadura militar aponta para o horizonte enganoso, uma vez que o problema já está posto, embora sob coloração distinta. Hoje não vivenciamos a ditadura verde-oliva, mas a preta, da toga, que não apenas ignora o universo jurídico senão quando lhe interesse aplicá-lo desfavoravelmente aos seus perseguidos. Há clara formação de atores jurídicos comprometidos majoritariamente com uma determinada visão de mundo, perspectiva reforçada e profundamente alimentada pela própria estrutura, dinâmica de funcionamento e lógica de poder das instituições judiciais. As forças judiciais intervém enquanto mediadoras de conflitos sociais, historicamente concentrando atividades na mediação da divisão do produto social. O conceito de justiça conexo aos critérios de divisão deste produto descortinou o território para as mais encarniçadas lutas históricas, mas o mascaramento disto e as vias de superação foram localizadas na legitimidade outorgada ao mundo togado. Mas o que dizer quando este, sorrateiramente, abandona a posição de equidistância entre os contendentes e se torna absolutamente parcial e comprometido com um deles? Omisso que foi durante o recente e profundo processo de desconstitucionalização, hoje, concretamente, o mundo togado apoia apenas formalmente a manutenção da Constituição, da qual não restam mais do que frangalhos. O quadro das traições à pátria logo começará a receber a prova e contraprova de seus desonrados nomes que lhe preencherão.

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A omissão dos altos poderes da República em face aos abusos e violações múltiplas de atores jurídicos denota mais um espectro da já conhecida dominação e controle da esfera econômica sobre a vida política. Determinante de seus rumos, até o momento, resta ainda por descortinar algo que virá a ser conhecido: a putrefação do mundo togado. O fechamento hermético é a salvação da exalação pública de seus odores. Os concertos e desacertos internos operaram em segredo, permitindo transações tenebrosas para a democracia popular. A ditadura togada sem mandato nem juízo ou prudência ousa determinar os rumos políticos da nação, malgrado a insistência de falsos intelectuais em fazer crer que os processos eleitorais aos quais os cidadãos são submetidos de tempos em tempos seriam os reais determinantes das relações políticas em sociedade.

As intervenções do grupo dominante invertem a relação de fundo de uma sociedade pretensamente democrática, qual seja, a de resolver positivamente a questão da justiça, tão antiga quanto a da própria partilha dos bens sociais. A justiça social tem um signo alto e indissociável de seus propósitos que, como diz Elias Canetti, é o de "[...] que todos tenham o que comer". A ditadura togada atua sob o alto signo da extração de seus próprios proveitos e o de seus associados mas que, desconhecedora das entranhas da política, desde o seu egoísmo radical da lei fundamental da política como diz Juan Linz, desentende-se de que o poder é outorgado para que a autoridade constituída satisfaça os interesses materiais da população. A titularidade popular do poder é elemento essencial do conceito da democracia ocidental que, vilipendiado, já não mais existe. Contudo, a novidade é a emersão de ditadura togada que deslocou o poderio da esfera política para uma grandeza menor, mas ela não realizou tal movimento sem associação à esfera econômica, da qual lhes extraem mil favores e prebendas inauditas.

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A teoria da democracia concebe a soberania residindo no povo, e Foucault ressalta que ela nasce (e se legitimamente se expande) precisamente "[...] por baixo, pela vontade daqueles que têm medo". Mesmo a observação do olhar menos atento discernirá que o horizonte não está habitado por uma definição política traçada por este titular do poder soberano, senão apenas artificiosa e artificialmente, pois já não é o povo quem decide sobre as questões do Estado e nem o Estado de exceção. Hoje o povo é apenas destinatário da decisão de um crescente soberano oculto que lhe impõe um Estado de exceção econômico (e jurídico-político quando necessário) através das mil máscaras que as mil fantasiosas sutilezas institucionais do regime impõem através de falsificados sistemas eleitorais e consequentes nefastas casas legislativas que encarnam publicamente a crise representativo-democrática. A ditadura togada e seus associados precisam operar à socapa, pois não podem apresentar-se publicamente como violadores da democracia e da legislação que a sustenta e que funcionalmente tem a competência de proteger.

Um dos equívocos recorrentes cometidos neste cenário é o de avaliar que a presença de uma ditadura – e a do mundo togado inclusive – requer uma completa anomalia funcional do sistema jurídico. A estratégica sutileza é a de constituir um regime político que leve a percepção distorcida do real e ao equívoco político. A anomalia funcional de um sistema já não é necessária para configurar uma ditadura, pois nem sequer os casos-padrão, tais como o nacional-socialismo e o fascismo italiano operaram em termos absolutos. É isto o que afirma, por exemplo, Michael Stolleis, para quem "[...] there were important areas of the law that remained seemingly unchanged on the outside and functioned "normally", just as they had during the Weimar Republic". Em cenários políticos críticos, portanto, o desenho institucional e o exercício do poder pode ocorrer segundo o modelo ditatorial sem que isto implique a sua universalização dentro do sistema jurídico e, portanto, no nível ordinário das relações sociais, muitas delas podem continuar a ser mediadas pela legislação e funcionando normalmente.

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Quando aos coordenadores do poder interessar ou quando alguma inaudita razão histórica pressionar, então, a massa de brasileiros finalmente descobrirá que sob a toga não jaz nenhuma alma divina, mas tão somente homens e mulheres dotados dos mesmos vícios, falhas e pecados que o restante dos mortais e, então, finalmente, terá chegado o momento de repensar o Estado. Será neste momento que o mito da Lava Jato cairá, e então chegado o momento de lavá-la por dentro, quando ruirão as últimas esperança do povo brasileiro na intervenção de figuras míticas redentoras. Ao perder esta última esperança, eo ipso, nascerá a mais genuína transcrição do real, a saber, que a construção do mundo e das instituições depende exclusivamente do próprio povo ainda mesmo em face das piores adversidades.

Sem embargo, enquanto as tormentas não recrudescem, o cenário é de que as violências contra a Constituição são praticadas por Savonarolas menores e Torquemadas de arrabalde além de seus mil arlequins adicionais que pretendem incendiar uma grande democracia popular da qual tem profunda ojeriza. Este momento não foi possível sem a decisiva contribuição da traição dos altos poderes da República dos seus verdadeiros soberanos, o povo, mas, sobretudo, dos seus genuínos líderes. Figuras como estas desenharam um tempo que desconhece Kant e menospreza Habermas e por isto criam um tempo de triunfo da pior versão schmittiana. Este foi o caminho percorrido pelos traidores da democracia e das suas instituições.

Os altos poderes da administração estatal brasileira assentiram com a traição, compactuaram com a mais odiosa das práticas políticas que é a da emasculação dos poderes democrática e constitucionalmente constituídos através das urnas para entregá-los a uma quadrilha, omissão que abriu espaço criminoso para que as riquezas nacionais estejam sendo alvo de literal entrega juntamente com o futuro da nação sob o absoluto silêncio dos ditadores de toga, muito atentos, sem embargo, a mostrar publicamente as suas patéticas habilidades com recursos eletrônicos assim como a recibos de aluguel e ao número de dias do mês de junho.

Todos esperamos ver o lumiar do dia em que os homens minúsculos que habitam estes dias maiúsculos terão de prestar contas e pagar por seu bloqueio à emersão do povo brasileiro à condição de prosperidade que estava em vias de alcançar através da organização de um governo popular assim como da justa e legítima alocação dos recursos econômicos disponíveis como, por exemplo, os do pré-sal. Hoje uma das perguntas que precisam ser respondidas é como abordar os que se encontram cercados pela força bruta ou, tal como perguntaria Canetti, como franquear-lhes acesso ao detentor do poder que em seu luxuoso palácio obstaculiza-o a todos, impedindo a massa, pois, poderoso, "[...] pode mandar agarrar quem quer que seja, esteja onde estiver. Mas como agarrar a ele, cem vezes isolado?" A aristocracia togada encontra-se muito bem cercada e isolada em seus palácios bem entrincheirada sob a remuneração das estruturas do capital. A Bastilha somente pode cair de uma forma.

O poder ditatorial togado hoje operante busca este isolamento em seu castelo de ouro. Suas intervenções tem lugar à semelhança da descrição canettiana sobre a capacidade do caçador agir sobre a sua presa: "A pressão pode intensificar-se até o esmagamento. Até onde se vai com ela [...], isso depende da periculosidade da presa. Se se teve de enfrentar uma dura luta com ela; se se foi seriamente ameaçado; se ela provocou a ira ou infligiu um ferimento, com prazer far-se-á com que ela o sinta, pressionando-a mais do que o necessário para se ter segurança da sua posse". O poder ditatorial togado desfruta de apreço que apenas a densa névoa e a sombra de luzes projetadas é capaz de proporcionar, e a possível e eficaz resposta popular pode variar muito pouco além da sugestão de Guerra Junqueiro (1850-1923) ao questionar-se sobre os limites da lei: "Se a lei, diante dos actos de um homem, nocivos à existência de quatro milhões de criaturas, me tolhe o direito de os combater e condenar, se a lei me obriga a ser injusto e ser indigno, renego a lei, odeio a lei e não a cumpro. Porque não há lei de tirania, que me obrigue a faltar à lei suprema da verdade".

A ditadura togada indiferente aos valores democráticos se aferra e defende um modelo ideológico e de Estado que oferece milhares de reais e prebendas mil de todo gênero às altas classes, razão suficiente para abster-se de intervir e brecar o abuso econômico levado a termo pela oligarquia no poder e sua aberta função subversiva da democracia popular. As variáveis ideológicas são plurais mas aglutinadas em um determinado núcleo de valores alheados da normatividade constitucional, particularmente em seus direitos sociais. Hoje a ditadura togada apoia a concretização da ideologia que auxiliou a conceber à parte da legalidade e ancorada em seu poderio hermenêutico. Aplica a teoria da pureza ética, que identifica desvios tão somente nas figuras representativas políticas populares, teoria substituta histórica da pureza racial, potencialmente bárbara em sua dinâmica erradicadora do mal na terra através das supostamente inquestionáveis instâncias judiciais.

A ditadura togada compõe as suas ações e mobiliza os seus instrumentos através de um mal-acabado e nefasto medievalismo judicial associado ao discurso laudatório da grande figura heroica, o Condottieri, o Duce, o Führer, figura que hoje veste toga. Em nenhum caso a proteção ao direito constituído democraticamente é o que está em causa, mas sima única e exclusivamente o duro voluntarismo. O compromisso e pauta política é tão claro quanto a eleição do inimigo que a ditadura togada instalada combate com as armas que o direito eficazmente lhe disponibiliza.

A ditadura togada reconstitui em nova chave a história do submundo da dominação política agora sob a respeitável formatação judicial, prática senhorial ordinária e corrente nas sociedades escravocratas, prenhe de maldades e traições, supinamente punidora dos estratos desprivilegiados mas torpemente condescendente com os altos delinquentes em quaisquer de seus crimes. A ditadura togada desenvolveu a máquina mais eficiente de trituração sem produção de sangue mas habilíssima em destruir vidas, e através do poder de aplicar a lei realiza esta função sem deixar rastros.

Esta é a marca de um judicialismo oligárquico ou do moderno fenômeno da ditadura legal. A resposta necessária é compatível com a sugestão de Guerra Junqueiro, segundo quem "O monarca é indiscutível, é inviolável, [apenas] enquanto o monarca, rigorosamente, obedece à lei. Deixando de a cumprir, termina-lhe o direito, porque falhou ao dever. E então não é só discutível, é destituível". Tão apropriada é esta interpretação para a condição do monarca quanto o é para as várias formas ditatoriais, inspiradora da compreensão de que não haverá trilha firme e segura para a democracia brasileira antes que a reforma do mundo da toga o atinja desde uma forte perspectiva desaristrocratizante e com promissor viés democrático-popular. Hoje, os ditadores não vestem uniformes verdes, as ditaduras vestem togas pretas.

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