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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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A era da auto-ilusão

"Duas relíquias desbotadas da Guerra Fria, os EUA e a Rússia, lançam guerras fúteis e auto-destrutivas para recuperar os seus poderes imperiais"

Joe Biden e Vladimir Putin (Foto: Reuters)
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Por Chris Hedges 

(Pupublicada no seu blog The Chris Hedges Report, traduzida e adaptada por Rubens Turkienicz para o Brasil 247)

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Cegos por aquilo que Barbara Tuchman chama de “a belicosa frivolidade de impérios senis”, estamos marchando ameaçadoramente na direção da guerra com a Rússia. Como mais podemos explicar a declaração pública do Secretário da Defesa [dos EUA] Lloyd Austin de que a meta dos EUA é “enfraquecer a Rússia” e o de Joe Biden de pedir outros US$ 33 bilhões de ajuda militar e econômica “emergencial” (a metade do total que a Rússia gastou com as suas forças militares em 2021) para a Ucrânia?

O mesmo conluio de generais e políticos que drenaram o estado em trilhões de dólares nos desastres no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia e na Somália e nada aprenderam com o pesadelo do Vietname, se deleitam com a ilusão da sua onipotência. Eles não se interessam por uma solução diplomática. Há bilhões de dólares em lucros para se ganhar com a venda de armas. Há uma pose política a fazer. Existem generais que estão se coçando para apertar o gatilho. Para que ter todos estes sistemas de armas de alto preço e tecnologicamente avançadas, se não se pode usá-las? Por que não mostrar ao mundo desta vez que os EUA ainda dominam o globo?

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Os mestres da guerra necessitam ter um inimigo. Quando não se encontra um inimigo – como George Orwell entendeu no seu livro 1984, há que fabricar um inimigo. Aquele inimigo pode se tornar um aliado da noite para o dia – nós [EUA] nos aliamos com o Irã no Oriente Médio para lutar contra os Talibãs e, depois, contra o Califado – antes de restabelecer instantaneamente o Irã como a encarnação do mal. O inimigo não se trata de uma questão de lógica ou de necessidade geopolítica. Trata-se de atiçar o medo e o ódio que alimentam a guerra perpétua.

Em 1989, eu cobri as revoluções que derrubaram as ditaduras comunistas na Europa Central e Oriental. O Presidente Mikhail Gorbachev, assim como o seu sucessor Boris Yeltsin e Vladimir Putin nos estágios iniciais do seu governo, tinham a esperança de integrar a Rússia na aliança ocidental. Mas a indústria da guerra coloca os lucros antes da defesa nacional. Eles precisavam de uma Rússia antagonista para empurrar a expansão da OTAN além das fronteiras da Alemanha unificada, violando uma promessa feita a Moscou. Há bilhões de dólares para serem ganhos com um inimigo russo, assim como há bilhões a ganhar com uma guerra por procuração na Ucrânia. Não haveria um “dividendo de paz” no final da Guerra Fria. A indústria da guerra estava determinada a continuar a sangrar os EUA até o fim para acumular os seus lucros obscenos. Eles provocaram e antagonizaram a Rússia, até que a Rússia cumpriu o seu papel pré-determinado.

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A humilhante retirada do Afeganistão e duas décadas de desastres militares no Oriente Médio foram expiados magicamente na Ucrânia, apesar de ainda não termos [os EUA] alocado quaisquer tropas em solo ucraniano. Nos adonamos dos ucranianos, assim como fizemos com os mujahideen que financiamos para lutar contra os soviéticos no Afeganistão.

“Pela primeira vez em décadas, um presidente estadunidense está mostrando que ele, e somente ele, pode liderar o mundo livre”, escreveu George Packer, um dos mais ardentes incentivadores de torcida para a invasão do Iraque, na revista The Atlantic(https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/02/ukraine-crisis-test-democracy-realist/622932/).

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“A OTAN foi revitalizada, os EUA recuperaram um manto de liderança que alguns temiam ter desaparecido no Iraque e no Afeganistão, e a União Europeia encontrou um unidade e propósito que lhe escaparam durante a maior parte da sua existência”, grasnou o The New York Times(https://www.nytimes.com/2022/03/05/world/europe/russia-ukraine-invasion-sanctions.html)

O The New York Timesescreveu que o General Mark A. Milley, chefe do Estado-Maior das forças militares estadunidenses, carrega com ele um mapa da Ucrânia, marcado com detalhes táticos. “Com os seus ajudantes, ele detalha a localização e a prontidão de combate de unidades de tropas russas de terra e movimentos de navios russos”, o jornal assinala.

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O ex-comandante da OTAN declarou ao programa “Today” da rádio BBC 4 que o Ocidente deve se preparar para lutar contra a Rússia.

“No pior dos casos, é a guerra contra a Rússia”, disse ele. “Preparando-se para o pior dos casos, é mais provável deter Putin, porque em última análise, Putin respeita a força.”

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A guerra é uma droga. Ela estropia o seu corpo. Ela confunde o seu cérebro. Ela reduz você à pobreza. Porém, a cada nova dose, ela lhe remete de volta aos extases eufóricos de onde você começou.

Mais armas significam mais lutas. Mais lutas significam mais morte e destruição. Mais morte e destruição significam mais antagonização de Moscou. Mais antagonização de Moscou significa que nos aproximamos cada vez mais da guerra aberta contra a Rússia. Após os ataques da Ucrânia contra instalações militares e de energia russas, Moscou ameaçou atacar os embarques de armas vindos da OTAN. Cambaleando com as sanções, Moscou suspendeu o suprimento de gás a dois países europeus. Eles advertiram que o risco de uma guerra nuclear é muito” real” e que qualquer intervenção estrangeira direta na Ucrânia provocaria uma resposta “rápida como um relâmpago”. Enquanto a Finlândia e a Suécia debatem sobre entra na OTAN, a Rússia chamou a expansão adicional da OTAN como um perigoso ato de agressão – o que certamente o é. Há uma crescente pressão para estabelecer uma zona de exclusão aérea [no-fly zone], uma ação que detonaria uma confrontação direta entre a Rússia e a OTAN, assim como seria um ataque da Rússia sobre um comboio de armas da OTAN num país vizinho à Ucrânia. O revanchismo de Putin se equipara ao nosso [EUA].

A desorganização, inépcia e baixo moral dos conscritos do exército russo, combinado com as repetidas falhas de inteligência cometidas pelo alto comando russo, aparentemente convenceram a Rússia que ela dominaria a Ucrânia em alguns dias – expondo a mentira de que a Rússia é uma ameaça global. O comboio militar russo de 65 quilômetros de tanques e caminhões, quebrados e sem combustível, parados numa estrada lamacenta na estrada para Kiev foi incapaz de superar uma força menos equipada e numericamente inferior na Ucrânia – muitas daquelas tropas tem pouco ou nada de treinamento militar. A Rússia não representa uma ameaça à aliança da OTAN, nem aos EUA – exceto num ataque nuclear.

“O urso russo efetivamente perdeu as suas próprias presas”, escreveu o historiador Andrew Bacevich.

Mas esta não é uma verdade que os fazedores de guerra transmitem ao público. A Rússia deve ser inflada para se tornar uma ameaça global, apesar das nove semanas de humilhantes falhas militares [na Ucrânia]. Um monstro russo é a raison d'être [razão de ser] para um aumento nos gastos militares [dos EUA] e a maior projeção do poder estadunidense no exterior – especialmente contra a China. Os militaristas necessitam de um inimigo mortal. Aquele inimigo pode ser uma quimera, porém sempre será liderada pelo novo Hitler. Outrora, o novo Hitler foi Saddam Hussein. Atualmente, é Vladimir Putin. Amanhã, será Xi Jinping. Não se pode drenar e empobrecer a nação [os EUA] para alimentar uma insaciável máquina militar, a não ser que você amedronte o seu povo, ainda que seja de fantasmas.

A guerra na Ucrânia está intimamente ligada à crise existencial real que nós enfrentamos – a crise climática. O relatório mais recente do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change) adverte que as emissões de gases-estufa devem chegar ao ápice até 2025 e devem ser reduzidas pela metade nesta década, a fim de impedir uma catástrofe global. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, caracterizou o relatório como “um atlas do sofrimento humano e uma acusação condenatória da liderança climática falida.” Desencadeada pela guerra na Ucrânia, os crescentes preços da energia forçaram os EUA e outros países a pedir aos produtores domésticos de petróleo que aumentem a extração de combustíveis fósseis e para exacerbar a crise climática. Os lobistas do petróleo e do gás exigem que o governo Biden suspenda as proibições de perfurações offshore e em terras federais.

As pessoas pretas e marrons que sofreram nas guerras brutais no Iêmen, no Iraque, na Somália, no Afeganistão e na Síria, sem o apoio e a simpatia ocidentais demonstradas com relação aos ucranianos – estas serão atingidas novamente. Atualmente, o subcontinente indiano está afligido por temperaturas que chegam a 47º Centígrados, interrupções de fornecimento de eletricidade por 10 a 14 horas por dia e campos de plantações que estão morrendo. Estma-se que 143 milhões de pessoas serão deslocadas nos próximos 30 anos – quase a metade delas na África, no sul da Ásia e na América Latina, declara o relatório do IPCC.

Estes infindáveis conflitos inevitavelmente militarizarão a nossa resposta ao colapso do clima. Na ausência de medidas e recursos para impedir o aumento das temperaturas globais, reduzir a nossa dependência em combustíveis fósseis, adotar uma dieta baseada em plantas e inibir o consumo perdulário, as nações usarão cada vez mais as suas forças militares para esconder os recursos naturais em diminuição, incluindo alimentos e água. A Rússia e a Ucrânia são responsáveis por 30% de todo o trigo comercializado nos mercados mundiais. Desde a invasão, o preço do trigo subiu entre 50% e 65% nas bolsas de commodities. Este é um sinal daquilo que virá.

A Ucrânia faz parte de uma ordem mundial na qual o estado de direito descartado à favor de um ato criminal de agressão – uma agressiva guerra preventiva. Estas guerras trazem com elas os “sites negros” [black sites, prisões clandestinas], os sequestros, a tortura, os assassinatos mirados, a censura e as detenções arbitrárias. Juntamente com as unidades paramilitares clandestinas de inteligência, os empreiteiros privados desonestos executam crimes de guerra que não estão nos manuais [off-the-book-war crimes]. O Grupo Wagner da Rússia (o nome Wagner é supostamente a sigla do seu fundador e comandante, um ex-oficial da GRU [serviço de inteligência militar da Rússia] chamado Dmitry Utkin – quem se diz ter emblemas das Waffen-SS nazista tatuados nas suas clavículas), ou o grupo mercenário estadunidense Academi, fundado pelo líder cristão de direita Erik Prince – estes funcionam mais como esquadrões da morte.

A guerra é uma forma espetacular de controle social. Ela assegura um consenso de massas cego e incondicional, apoiado por aquilo que Pankaj Mishra chama de “infotainment media” [mídias de informação+entretenimento] que leva os cidadãos a um estado de patriotismo paranoico”, enquanto que “uma classe servil de intelectuais fala sobre a Revolução Americana (sic) e a ordem liberal internacional.”

Mishra escreveu o seguinte no The London Review of Books:

A humilhação no Iraque e no Afeganistão e a feita nos EUA por Trump, desmoralizaram os exportadores da democracia e do capitalismo. Porém, as atrocidades de Putin na Ucrânia deram agora a eles a oportunidade de fazer a América sic) parecer grande de novo. O urso russo há tempos – mais confiavelmente do que o 'Islamofascismo' ou a China – tem garantido renda e identidade para muitos no complexo militar-industrial e intelectual-industrial. As envelhecidas instituições centristas – maltratadas pela extrema direita, criticada pelos jovens esquerdistas do pós-Occupy [Wall Street] e pós-BLM [Black Lives Matter – Vidas Negras Importam], frustradas pelos impasses legislativos em Washington – de repente, parecem galvanizadas pela perspectiva de se definirem através de uma nova guerra fria.”

Este mundo de fantasia é sustentado por mitos – o mito de que os povos do Afeganistão e do Iraque nos [os EUA] dar as boas-vindas enquanto libertadores, que a Ucrânia não é uma nação de verdade, que os próprios ucranianos se veem como pan-russos, que tudo que está entre os iraquianos, os afegãos, os sírios , os somalis, os iemenitas e os líbios e nós [EUA] são terroristas, que tudo que está entre Putin e os ucranianos são os neonazistas e seus apoiadores no Ocidente.

Aqueles que desafiam estas fantasias – seja na Rússia ou nos EUA – são atacados, marginalizados e censurados. Poucos notam isso. O sonho é mais atrativo que a realidade. Passo a passo, estes ciclopes cegos e ensanguentados da guerra cambaleiam para a frente, deixando montes de cadáveres no seu rastro.

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fonte: https://chrishedges.substack.com/p/the-age-of-self-delusion?r=9lbhd&s=r&utm_campaign=post&utm_medium=email  

(*) no original em inglês, o título é: 'The Age of Self-Delusion'. Infelizmente, a palavra 'delusion' é (incorretamente) traduzida nos dicionários como sendo igual a 'ilusão' em português. Onde está o erro? Simples: 'Ilusion' é uma fantasia, algo irreal, uma crença em algo que não existe e que se desfaz depois de algum tempo e/ou quando ocorre algo que a desminta. 'Delusion' (**), por sua vez, é uma ilusão fixa, uma Idea fantasiosa que jamais se extingue; pior ainda, esta ilusão fixa é à prova de desmentidos – mesmo quando comprovadamente falsa, a mente que a inventou se agarra nela, esperando que da próxima vez esta aconteça. Este é um desafio de tradução e uma simplificação indevida – estas são definitivamente palavras semanticamente distintas, não são sinônimas nem podem ser reduzidas a uma delas. Os exemplos vivos de 'delusão' na realidade brasileira são evidentes – desde a política até o futebol, desde as religiões até o “como deus quiser”. Assim sendo, eu preferiria traduzir o título como 'A Era da Auto-Delusão' ou, em linha de máxima, 'A Era do Autoengano' (apud Eduardo Gianetti no seu brilhante livro de mesmo título). Durma-se com um barulho desses...  

 (**) A delusion is a false fixed belief that is not amenable to change in light of conflicting evidence. As a pathology, it is distinct from a belief based on false or incomplete information, confabulation, dogma, illusion, hallucination, or some other misleading effects of perception, as individuals with those beliefs are able to change or readjust their beliefs upon reviewing the evidence. However: "The distinction between a delusion and a strongly held idea is sometimes difficult to make and depends in part on the degree of conviction with which the belief is held despite clear or reasonable contradictory evidence regarding its veracity." Delusions have been found to occur in the context of many pathological states (both general physical and mental) and are of particular diagnostic importance in psychotic disorders including schizophrenia, paraphrenia, manic episodes of bipolar disorder, and psychotic depression. (source: https://en.wikipedia.org/wiki/Delusion)  

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