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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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A esquerda gospel, o evangeliquistão e a morte do Estado laico

Evangelicos (Foto: Pixabay)
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Protestei contra haver show gospel na posse de Lula e tomei a pecha de “preconceituoso”, simplesmente por defender que a posse é um espaço laico. Alguns amigos vieram me falar de perseguição religiosa e preconceito contra os evangélicos. Antes de tudo é importante organizar algumas ideias, queridinhos:

1. Não existe racismo reverso, racismo é estrutural e é feito pela classe dominante branca contra a maioria dominada negra. Portanto, é óbvio que é impossível esta bobageira de racismo reverso, se alguém algum dia sofreu um xingamento por ser branco demais a gente pode chamar de bullying, abuso, o que quer seja, menos de racismo, porque não há uma estrutura de Estado e cultural que reflita e encoraje isto.

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2. O feminismo não é o contrário do machismo, o machismo mata, espanca, o patriarcado é outra estrutura cultural e alicerçada nos aparelhos de Estado.

3. Não existe heterofobia. A sociedade é heteronormativa, não existe nenhum heterossexual que tenha sido ridicularizado na rua, tenha perdido o emprego, tenha sido hostilizado em casa, pela família ou na rua, ou espancado e morto por ser heterossexual.

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Queridos, tem um 4 nisto aqui.

4. Religião dominante não sofre preconceito ou perseguição. Não existe preconceito no Brasil contra evangélicos. Foi uma sacada bem boa de pastores pentecostais para terem “licença para matar”. Toda vez que alguém os acusa de misoginia, homofobia, de utilizar palcos de igreja para pregarem o fascismo, eles lançam este monstro de 7 cabeças, que não é monstro e não tem sete cabeças, de que há uma perseguição e preconceito contra religião evangélica no Brasil.

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Uma mentira dita 100 vezes acaba se tornando uma verdade, já dizia Goebbels. Tem gente que acredita piamente nisto, já ouvi de uma companheira, membro de uma igreja neopentecostal (de esquerda e petista), que estamos numa “guerra espiritual no Brasil” contra os valores cristãos, e que a igreja sofre perseguições só comparáveis aos tempos de Roma. Tudo alimentado por uma rede de fake news, que fala desde igrejas queimadas na Etiópia a templos derrubados em Angola ou fechados na Venezuela. Assim, uma religião dominante, a segunda mais influente no Brasil, com cerca de 35% da população professando sua fé, diz para si mesma, que está numa guerra espiritual e que tem que defender sua fé.

Que pessoas de direita e que acreditam em fake news creiam nisto é algo factível, mas sim, é fato que tem muita gente de esquerda que mistura alhos com bugalhos e já comprou este discurso de perseguição a sua fé, e reage atacando o espaço laico e achando que espaço político é espaço de propagação de fé. O Brasil é um dos países mais deístas do mundo, Cristãos auto-declarados são 81% da população brasileira (50% católicos + 31% protestantes), 10% se declaram religião mas são deístas (acreditam em algum Deus), 3% são espíritas, 2% do candomblé e umbanda e só 3% são ateus.

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Maiorias não são perseguidas, maiores perseguem. A única forma de garantir a liberdade religiosa é garantir o espaço público como espaço laico, ou seja, sem profissão de fé de nenhuma forma nos atos públicos da vida civil. A esquerda já defendeu isto, não só em documentos, mas abertamente. Como parte das seitas neopentecostais tem a herança conservadora e reacionária do Cotton Belt estadounidense, da leitura literalista e reacionária do Velho Testamento, no qual se misturam Ku Klux Klan com “defesa dos valores cristãos” (na verdade valores conservadores protofascistas), o medo de perder voto nestes seguimentos passou a não combinar com uma defesa do Estado laico.

Criou o que eu costuma chamar de “esquerda gospel”. Por favor, não confundam o que eu estou falando com a participação de líderes de qualquer culto nos atos nossos, mas falo abertamente de atos religiosos no meio dos atos políticos, desde os cultos ecumênicos (que são bem pouco ecumênicos na sua maioria, o ecumenismo restringe-se em 90% dos casos a um encontro de católicos com protestantes rezando o pai nosso e ratificando a ideia de religião oficial de Estado) ao convite para cantores “gospel” na posse de Lula, a ideia permanente é abrir brechas na ideia do Estado laico, tolerando de fato que haja uma religião oficial.

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Não, caros amigos, nem evangélicos nem católicos sofrem preconceito. Não há vereador tentando retirar imagem de Nossa Senhora Aparecida, através de projeto de lei, de lugar nenhum, como houve em Salvador na tentativa de se destruir as estátuas dos orixás da Lagoa do Abaeté. Nenhum católico precisa esconder paramentos para conseguir emprego, ou corre risco de ser apedrejado na rua por andar de branco. Nunca escutei falar de católicos ou protestantes terem uma missa invadida na praia por fanáticos religiosos, que sentem-se no direito de chamar a religião do outro de religião de Satanás, como ocorre nas celebrações do candomblé ou da umbanda. Nunca vi ninguém ser expulso do morro por “traficantes de Jesus”, pelo simples fatos de serem católicos ou protestantes, mas no Rio de Janeiro, casas de candomblé e umbanda são quebradas, suas lideranças são surradas, ameaçadas ou mortas e praticantes são expulsos de áreas dominadas pela milícia e pelo tráfico pelo simples fato de professar outra fé.

Sim, meus caros, há preconceito e racismo religioso no Brasil, mas são contra as religiões de Matriz Africana, e não, não estou pregando que devam soar os atabaques na posse de Lula, que eles soem nos terreiros, defendo que se pare de fingir que tocar a música conversionista da religião dominante seja um ato de tolerância. É uma ato de hegemonia.

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No Rio de Janeiro, que cada vez mais se parece com um evangeliquistão neopentecostal, o espaço público foi invadido por esta prática. Não se pode mais ir a um supermercado ou a uma loja qualquer sem ser obrigado a “escutar louvor”, como se o espaço público fosse de pregação permanente, como se vivêssemos num regime com uma religião de Estado. Isto está longe de ser tolerância, é abuso com o beneplácito do poder público (que também não quer nem pensar em perder algum votinho neopentecostal). Há alto-falantes espalhados em boa parte das ruas tocando rádios evangélicas no maior som possível, como se fosse normalizada a ideia de que todos devem ser molestados por uma crença que não seja a sua, sem direito de reclamar. Outro dia, fui protestar no trem porque havia um culto no horário de rush, no vagão em que eu estava (o que é proibido pela letra morta da lei) e fiquei muito perto de sofrer um linchamento público e até de “mensageiro do Diabo” fui xingado. Sim, meus caros, na realidade, a perseguição é aos que discordarem.

Isto está muito longe de ser tolerância e não há nenhuma intolerância em reclamar desta invasão do espaço público. Aliás, basta fazer um exercício e tocar uma “gira de Exu”, 2 minutos, num espaço público, no mesmo alto e bom tom para ver qual seria a reação. Me sinto como se vivesse em Cabul e tivesse que praticar um ato obrigatório da religião estatal.

A esquerda não reage porque vereadores e deputados pensam mais em votos do que no Estado laico. Numa esquerda que se desorganizou no movimento social, e só se organiza para pedir votos de 2 em 2 anos, virou um consenso burro a ideia de “temos que dialogar com este povo”. O problema é que diálogo pressupõe a dialética, a via contraditória de troca de ideias cheias de contradição. Quando se diz diálogo na verdade se diz aceitação pura e simples desta invasão do espaço público e que devemos implorar o voto evangélico sem fazer nenhum trabalho ideológico.

Neste ritmo e nesta prática haverá em pouco tempo um consenso que não se deve defender nenhum espaço laico, incluindo tolerar que púlpitos sejam locais de organizações de células fascistas. O simples fato de alguém ser pastor não dá imunidade a ele para cometer crimes porque dentro de uma igreja (aliás, há ideia de projetos neste sentido no Congresso). Desde os ataques ao Estado Democrático de Direito, perpetrados por Malafaia, Feliciano e André Valadão, aos crimes praticados por Damares, disfarçados de culto, a uma série de ofensas a negros, nordestinos, praticantes de cultos afrobrasileiros (inclusive na TV aberta, feitos publicamente pela TV da Universal) como os feitos faz poucos dias, contra nordestinos, por um pastor da Igreja Batista de Piabetá. Criou-se um consenso que não devemos criminalizar o fascismo, desde que o fascista porte uma bíblia debaixo do braço para cometer crimes de racismo, homofobia, xenofobia, ataque à Constituição.

Não, queridos, sejamos sinceros com nós mesmos, não queremos diálogo, queremos apenas voto, assim, somos tolerantes com os intolerantes e com as práticas de ataque, não só ao Estado laico, mas ao Estado Democrático de Direito, desde que consigamos manter a hegemonia eleitoral.

A esquerda ficou tão viciada em apenas lutar pela urna que largou de lado a disputa ideológica por corações e mentes na população. Acha normal que quem faça a educação ideológica sejam cristãos literalistas herdeiros do Cotton Belt. O resultado desta hegemonia é a ameaça permanente e constante à democracia e um exército de fanáticos seguidores capazes de seguir as ordens mais irracionais da extrema-direita.

O diálogo a ser proposto tem que ser outro, de reorganização das nossas forças, de reedução ideológica do povo trabalhador, quase um renascimento iluminista, dado o risco bem claro de nos transformamos numa república teológica protofascista.

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