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Nêggo Tom

Cantor e compositor.

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A eugenia racial do Rock In Rio

Já está chato, essa história de Rock in Rio sem artistas pretos e quase sem Rock também. Tendo em vista a diversidade musical (não que isso seja ruim, embora não se alinhe em nada com o nome do evento) dos convidados, o festival deveria se chamar Pop in Rio

Já está chato, essa história de Rock in Rio sem artistas pretos e quase sem Rock também. Tendo em vista a diversidade musical (não que isso seja ruim, embora não se alinhe em nada com o nome do evento) dos convidados, o festival deveria se chamar Pop in Rio (Foto: Nêggo Tom)

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Quando você é adolescente e sonha em ser músico, você vai criando as suas referências e se inspirando em artistas com os quais se identifica. Seja pela musicalidade, pela personalidade, pela ideologia ou simplesmente por gostar e pronto. Na minha época de moleque, o som que dominava as rádios, ainda era o Rock 80, de Legião Urbana, Barão Vermelho, Ultraje, Lobão, Biquini Cavadão, Paralamas, Engenheiros do Hawai, Hojerizah e outros, que já estavam passando o bastão para galera dos anos 90. Skank, Raimundos, Planet Hemp, Jota Quest e Cidade Negra, que não era uma banda de Rock, mas era a única de grande expressão e de representatividade preta daquela época.

Cresci me sentindo um estranho no ninho, por gostar do Rock nacional, afinal, não se via pretos nas grandes bandas. A não ser, um Renato Rocha tocando baixo aqui, um Clemente cantando ali, tudo era supremacistamente branco no Rock BR 80. Seu Jorge já falou sobre isso e inclusive foi questionado por dizer que o Rock não era um gênero musical para pretos. Mas eis que a minha curiosidade musical fala mais alto e eu desando a procurar pretos que tocassem Rock. Assim, dou de cara com uma fita cassete de Jimy Hendrix (The last Concert), em uma loja e pá! Me senti Thomas Edison descobrindo a lâmpada elétrica. Havia luz no meu , até então, “inusitado” gosto musical. No mesmo dia, comprei uma do Red Hot Chilli Pepers e a pulsante "Give it Away" e a swingada “What it is” (onde slaps de um contra baixo funkeado e solitário, servem de base para um Rap bem no estilo americano), estavam lá. O Rock cada vez mais me seduzia.

Fui descobrindo através de livros e revistas do gênero, que o Rock'n Roll que eu tanto gostava, mas não me via representado e inserido em seu contexto – racialmente falando – tinha raízes no canto dos escravos americanos. Oh, yeah! Pesquisando um pouco mais, fui descobrindo nomes de artistas pretos, de grande relevância no cenário Rock'n Roll. Mas, ora! Se o Rock tinha os dois pés e o corpo inteiro na senzala, por que os pretos não tinham tanto espaço na mídia e sequer eram lembrados como os precursores do gênero? A resposta era óbvia. Porque eram pretos. O produtor musical Sam Philips, uma vez disse: “Se eu descobrisse um branco que canta como negro, faria um bilhão de dólares” E ele conseguiu. Descobriu Elvis Presley, o transformou no rei do Rock, contribuiu para o processo de eugenia racial do gênero e deve ter faturado o seu bilhão.

Já escrevi aqui, anteriormente, sobre o processo de “branquinização" o qual o Rock foi submetido, para sua melhor aceitação comercial, por parte da sociedade racista americana dos anos 50. Sam Philips era um visionário e provavelmente racista também. Sabia que o Rock poderia ser a expressão musical mais popular do mundo, mas não seria bem aceito se fosse apresentado na mídia, sob a cútis preta que o originou. A sequência da história, nós já sabemos. Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Janis Joplin, The Doors e os roqueiros pretos cada vez mais invisibilizados. O Brasil, é claro, seguiu o exemplo do Tio Sam e embarcou na onda, promovendo um “iê, iê , iê” nacionalista, alinhado com a eugenia americana e que resultou na Jovem Guarda, um dos nossos maiores movimentos musicais - sem dúvida - e que contribuiu para recuperar a hegemonia branca, num mercado musical que estava sendo dominado pelo swing e pela simpatia, do preto Wilson Simonal. Onde já se viu?

Dando uma olhada na programação do Rock in Rio 2017, vejo uma lista com mais de 70 atrações - divididas entre o palco principal e os alternativos – onde, apenas cinco delas representam a negritude e nenhuma delas tocam Rock e nem se apresentarão no palo principal. Entre elas estão: Elza Soares, Cidade Negra, os rappers Emicida, Rael e Miguel e o projeto “Salve o samba”. Será que não dava para trazer o Lenny Kravitz, o Living Colour? Mr. Little Richard, mesmo no auge dos seus 84 anos, ainda poderia resgatar – mesmo apenas com a sua presença como convidado especial – os tempos áureos do bom e velho Rock'n Roll. Quem sabe um show em holograma do Jimy Hendrix? Clemente e “Os Inocentes” Sei lá! Alguma representatividade preta do Rock. Alguém promoveria um festival de Fado, sem convidar artistas portugueses e sem citar a essência lusitana do gênero?

Quando, vira e mexe, surge uma questão que suscita a tal da apropriação cultural, muitos reclamam e associam ao mi mi mi e ao vitimismo. Mas como diria Caetano: “Tudo é muito mais” e muito mal também. Além da apropriação, existe a negação da participação do preto no processo criativo, a invisibilização do preto no processo evolutivo e a exclusão do preto no consumo do produto final. Como se aquilo ali não fizesse parte da sua cultura ou não pudesse ser bem representado por ele. Não tenha dúvida, de que a geração nutella, que se julga a legítima representante do gênero, ficaria chocada em saber que os escravos americanos, eram muito mais “irados” e 'radicais” do que ela. O senhor Roberto Medina, organizador do festival, tem idade e talvez conhecimento musical suficiente para saber disso, mas o racismo sistemico e que já não é mais tão sutil assim, segue ditando as regras de padronização comercial.

Já está chato, essa história de Rock in Rio sem artistas pretos e quase sem Rock também. Tendo em vista a diversidade musical (não que isso seja ruim, embora não se alinhe em nada com o nome do evento) dos convidados, o festival deveria se chamar Pop in Rio. E para piorar, ainda entregaram nas mãos do Crivella - o bispo golpista que não gosta de carnaval e que se veste de prefeito nas horas vagas - a guitarra que simboliza o evento. Desse jeito, vão acabar me convencendo que o Rock, se não era, virou coisa do diabo mesmo.

Valei-me, meu São Chuck Berry! 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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