A face clandestina da Operação Contenção não terminou com os 122 mortos
Deflagrada como espetáculo, a operação expôs policiais furtando armas, manipulando provas e tentando burlar câmeras corporais
A crônica do Rio de Janeiro, escrita à bala desde as primeiras rachaduras da República, ganhou em 28 de outubro de 2025 um capítulo tão escuro que a realidade pareceu ultrapassar a ficção policial. Naquele dia, a chamada Operação Contenção transformou os complexos do Alemão e da Penha em um inventário de devastação: 122 mortos ao final, sendo 117 pessoas classificadas pelo governo como suspeitas e 5 policiais que tombaram no confronto. O Rio assistiu, paralisado, à tentativa de rebatizar violência massiva como eficiência, como se o acúmulo de corpos pudesse compensar a ausência de estratégia, coordenação e ética institucional que deveriam guiar qualquer ação pública.
O que as câmeras corporais revelaram nos dias seguintes não foi exceção nem falha pontual: foi o retrato de uma estrutura fraturada. Policiais do BOPE flagrados furtando armas, radiotransmissores e acessórios táticos; tentando ocultar gravações; desmontando veículos apreendidos; e se referindo aos bens de apreensão como quem divide o despojo de uma guerra privada.
Um deles examina uma cozinha e comenta: “Vê se tem uma coisinha aí pra levar". Ao encontrar uma AK-47, arremata: “É ruim entregar esse daqui; vai ficar com a gente". Essas cenas desmontam, com frieza documental, a narrativa oficial de que desvios seriam acidentes isolados. Revelam, com clareza desconfortável, momentos em que o Estado adota métodos que o aproximam perigosamente daqueles que deveria combater.
À medida que essas imagens se acumulam, uma memória insistente retorna. Às três da manhã, volta a batida na porta e o refrão de Chico: “Chama o ladrão!”. Em 1974, no auge dos anos de chumbo, Acorda Amor parecia samba leve sobre ciúme; mas quem vivia a verdade subterrânea daqueles tempos sabia: o ladrão era o próprio Estado — o Estado que invadia, sequestrava e matava no escuro. A canção driblou a censura com ironia feroz, transformou medo em denúncia e deu voz a uma geração que dormia de sobressalto. Hoje, quando novas ações policiais tentam vender brutalidade como eficiência, o refrão ressurge com a mesma urgência: acorda, amor. Chama o ladrão. Não porque o crime mereça absolvição, mas porque parte do Estado insiste em repetir, com nova farda e velha lógica, o papel do invasor noturno.
Ao longo dos anos, acompanhando de perto o descompasso entre o que o Estado promete e o que entrega, tornou-se impossível ignorar uma percepção recorrente: o Rio não fracassa por falta de força, mas porque o Estado perde o domínio da própria integridade. Quando agentes encarregados de garantir a proteção pública reproduzem desvios que corroem seus próprios fundamentos, toda tentativa de ordem já nasce comprometida.
Essa erosão antecede a chegada ao morro; brota no quartel, na falta de controle interno, na normalização do excepcional, nas brechas disciplinares que se tornam rotina. O resultado é uma operação que tenta impor autoridade pela força enquanto desmancha, nos bastidores, a credibilidade que deveria sustentá-la.
É nesse vácuo institucional que o eco de Chico Buarque se torna mais que memória cultural: torna-se advertência histórica sobre o perigo de um Estado que alterna papéis entre guardião e agressor.
Ao observar, repetidas vezes, a forma como políticas de segurança são justificadas, torna-se impossível ignorar um padrão incômodo: a transformação da letalidade em métrica de desempenho. A insistência em comemorar operações que ampliam a contagem de corpos, mas não entregam estabilidade duradoura, diz menos sobre sucesso e mais sobre um desvio de propósito.
É ilusório afirmar que a Operação Contenção foi um êxito. Se tivesse sido, o Alemão estaria mais seguro; a Penha estaria mais segura; o Rio exibiria ao menos um sinal mínimo de pacificação. O que restou, porém, foi um rastro de medo, descrédito e vulnerabilidade — cenário que reitera a distância entre discurso e realidade.
A convivência prolongada com debates de segurança e direitos humanos deixa uma certeza difícil de afastar: a batalha decisiva no Rio não é territorial, e sim de confiança.
O crime se organiza porque o Estado hesita; e, sempre que agentes públicos recorrem a práticas que ecoam as das facções, o último fio de referência da população se rompe. Sem confiança, a autoridade perde substância, e o poder público se torna apenas mais um ator armado disputando espaço em um território exausto.
As câmeras corporais comprovaram sua utilidade: sem elas, nada do que ocorreu viria à luz. Mas o modelo atual permite manipulações que abalam qualquer política séria de controle institucional. O Rio precisa de um sistema em que a gravação seja ininterrupta, transmitida em tempo real para centrais externas, dotada de metadados invioláveis e obrigatória em todas as incursões, incluindo as de unidades especiais. Transparência que depende da vontade de quem está sendo monitorado não é transparência — é artifício.
A recuperação da autoridade estatal não pode ser remendo, e sim reconstrução. Isso exige monitoramento de enriquecimento incompatível; integração plena entre PM, Polícia Civil e Polícia Federal; fortalecimento real das áreas de inteligência; formação contínua em técnicas de redução de danos; e responsabilização dos comandos que toleram desvios.
Essa reconstrução ultrapassa o debate corporativo. É tarefa de Estado — e precisa sobreviver aos ciclos de governo. O Rio só terá chance de respirar quando a autoridade que sobe o morro representar, sem fissuras, a lei que diz defender.
A Operação Contenção expôs, com dureza, as limitações de um modelo que insiste em chamar de vitória aquilo que foi mais um fracasso.
O Rio não precisa de operações espetaculares; precisa de instituições sólidas. Precisa de um Estado que concorra com o crime por aquilo que o crime não tem: credibilidade, integridade e rumo.
Enquanto o poder público insistir em disputar território usando métodos que o aproximam de quem deveria combater, continuará colecionando cifras de mortos e perdendo a única batalha que realmente importa: a da confiança da sociedade.
E, nesse cenário, a lembrança de Chico permanece como advertência: quando a fronteira entre proteção e ameaça se confunde, o povo volta a chamar o ladrão — não para abrir a porta, mas para identificar quem insiste em atravessá-la com a farda errada.
A cidade seguirá nesse limbo até que decida reconstruir sua autoridade antes de tentar reconstruir o morro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

