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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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A falsa democracia, mas podem chamá-la de Julgamento e Prisão de Lula

Esta democracia é uma farsa. (E corrijo). É falsa. É uma democracia falsa. Nós temos a democracia que a grande burguesia, os ricos, os militares deixam o povo ter. Não viu ontem o comandante do Exército? E o que o outro general falou? Se não fizerem do jeito que eles querem, vai ter derramamento de sangue. Derrubam o governo. Nas armas

A falsa democracia, mas podem chamá-la de Julgamento e Prisão de Lula (Foto: Reuters | Ricardo Stuckert)
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Na quarta-feira desta semana, no ônibus ao meio-dia, eu tentava ler "Como funciona a ficção", de James Wood. E seguia anotando, aos solavancos, trechos dos quais muito discordava, como este:

"Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível".

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Eu me dizia: "Absurdo, será que não conhece Balzac? Será que esse cara despreza Stendhal?"

Mas de repente uma voz se levanta no ônibus e começa a mexer comigo mais que as besteiras escritas pelo crítico inglês. Era o cobrador, o profissional que no Sul e Sudeste chamam de trocador. Sentado em frente à catraca, ele falava ao motorista, mas se dirigia a todos no coletivo:

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- Esse julgamento de Lula eu já sei o resultado. Só não vê quem não quer.

"Sim, o que virá disso?", eu me perguntei. E fazia de conta que não escutava o cobrador no ônibus, enquanto o seguia, apesar da página do crítico Woods. O cobrador não deixava me perder à Flaubert. Ao seu modo, o trabalhador traduzia o "cesse tudo o que a musa antiga canta", pois falou:

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- Esse julgamento de Lula é político. Não tem nada de lei. É político.

Então eu fecho o livro, que outro valor mais alto se alevanta. E fico a balançar o queixo em sinal de aprovação às palavras lúcidas e sábias do cobrador. Ele me olha, faz que não me percebe, e continua:

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- Quer ver, quer ver? Se Lula falar "não quero mais ser candidato", pronto. Acaba o julgamento e ele vira inocente. Ligeiro.

O motorista gargalha. Um senhor à frente do cobrador, encostado à janela sorri para ele, que repete com mais ênfase:

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- É um julgamento político. É tudo política.

Os passageiros permanecem em silêncio. Então um senhor ponderado, comedido, sensato, que eu pensava ser, é substituído pelo educador público. E procurando ser didático, falo:

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- Esta democracia é uma farsa. (E corrijo). É falsa. É uma democracia falsa. Nós temos a democracia que a grande burguesia, os ricos, os militares deixam o povo ter. Não viu ontem o comandante do Exército? E o que o outro general falou? Se não fizerem do jeito que eles querem, vai ter derramamento de sangue. Derrubam o governo. Nas armas.

- Eu vi isso - o cobrador responde. – Eu vi.

Nessa manhã do dia do julgamento no STF, eu não podia ter lido os comentários da extrema-direita na internet do outro dia:

"General Eduardo Villas Bôas Intervenção Militar Já.... Defendam Lula, só assim a intervenção militar vem logo... Primeira coisa a ser feita, assim que a intervenção militar vier, é rasgar essa Constituição de merda feita por políticos corruptos em 1988"

Eu não havia ainda nem conhecido o vergonhoso voto da ministra Rosa Weber, que ao manifestar uma opinião afirmou que não seguia a própria opinião. Seguia a do comando militar, ela poderia ter dito. Mas no ônibus eu falava sob a guarda da previsão do cobrador. E continuo, com o máximo de didatismo, numa aula para a qual não me preparei:

- Se Lula voltar, ele para com essa reforma trabalhista. É isso o que os grandes empresários não querem. É incrível como a televisão não mostra o maior desemprego dos últimos anos no Brasil. Ela esconde que o trabalhador está se virando como pode, sem carteira assinada, vendendo churrasquinho na esquina. Então, não temos desemprego, não é? Na França, está o maior protesto contra a reforma trabalhista deles lá.

- Eu vi.

- Aí vem a comentarista da tevê e fala: "os franceses não gostam muito de reforma...". Então nós gostamos, não é?.

- Eles querem escravos. Trabalhador ficou sem direito. Trabalha por hora – e o cobrador olha para o motorista, que apenas escuta. Os passageiros em silêncio apenas arregalam os olhos, numa expressão de quem vai falar e cala.

Sinto não ser um tribuno público, dos eloquentes, de oratória que levante a indignação popular. Eu não sou o que muito gostaria de ser. Consigo apenas rascunhar à distância, quando a memória organiza o que mal fiz. Então desço do ônibus sem o efeito desejado.

Mas ontem, quando entrei no supermercado ouvi "A triste partida" na voz de Luiz Gonzaga. Que coincidência.
https://www.youtube.com/watch?v=r-8rsqTJi-0

Me comoveu profundamente. Eu olhava as garrafas de vinagre por disfarce, mas nada via. Só me falava com a visão da música: "ah se o povo soubesse, ah se o povo adivinhasse o que vem". Então o nada orador foi até o atendente no balcão de frios. Olhei de lado, só estávamos eu e ele. Eu sei a quem me dirijo, pois a maioria dos trabalhadores ali vêm do interior de Pernambuco. E lhe digo:

- Estava tocando há pouco "A triste partida" com Luiz Gonzaga. Você ouviu? É de Patativa do Assaré, um grande poeta. A letra fala do nordestino que foge da seca e não pode mais voltar pra sua terra.

"Do mundo afastado, sofrendo desprezo,
Ali vive preso,
Devendo ao patrão.
O tempo rolando, vai dia vem dia,
E aquela família
Não volta mais não!..
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo"

- Isso vai voltar –eu lhe digo. – Você se lembra que antes de Lula tinha saque nas feiras, quando havia seca?

- Não, não lembro não.

- É a sua pouca idade. Mas eram multidões de famintos saqueando farinha, charque, feijão, na tora. Feito gafanhoto. Isso vai voltar.

Diante do quadro pintado, o atendente nada me responde. Como alguém pode ser feliz diante do anúncio de morte da cidadania? Saí, e estava até agora sem saber sobre o que escreveria na coluna de hoje.

Agora, infelizmente sei. Depois da pegadinha de Sergio Moro, que decretou a buscada prisão sem esperar os recursos de uma sentença arbitrária, sei até o título da coluna. É "Falsa democracia", mas podem chamá-la de "Julgamento e Prisão de Lula".

 

Na quarta-feira desta semana, no ônibus ao meio-dia, eu tentava ler “Como funciona a ficção”, de James Wood. E seguia anotando, aos solavancos, trechos dos quais muito discordava, como este:

 

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível”.

 

Eu me dizia: “Absurdo, será que não conhece Balzac? Será que esse cara despreza Stendhal?”

 

Mas de repente uma voz se levanta no ônibus e começa a mexer comigo mais que as besteiras escritas pelo crítico inglês. Era o cobrador, o profissional que no Sul e Sudeste chamam de trocador. Sentado em frente à catraca, ele falava ao motorista, mas se dirigia a todos no coletivo:

 

- Esse julgamento de Lula eu já sei o resultado. Só não vê quem não quer.

 

“Sim, o que virá disso?”, eu me perguntei. E fazia de conta que não escutava o cobrador no ônibus, enquanto o seguia, apesar da página do crítico Woods. O cobrador não deixava me perder à Flaubert. Ao seu modo, o trabalhador traduzia o “cesse tudo o que a musa antiga canta”, pois falou:

 

- Esse julgamento de Lula é político. Não tem nada de lei. É político.

 

Então eu fecho o livro, que outro valor mais alto se alevanta. E fico a balançar o queixo em sinal de aprovação às palavras lúcidas e sábias do cobrador. Ele me olha, faz que não me percebe, e continua:

 

- Quer ver, quer ver? Se Lula falar “não quero mais ser candidato”, pronto. Acaba o julgamento e ele vira inocente. Ligeiro.

 

O motorista gargalha. Um senhor à frente do cobrador, encostado à janela sorri para ele, que repete com mais ênfase:

 

- É um julgamento político. É tudo política.

 

Os passageiros permanecem em silêncio. Então um senhor ponderado, comedido, sensato, que eu pensava ser, é substituído pelo educador público. E procurando ser didático, falo:

 

- Esta democracia é uma farsa. (E corrijo). É falsa. É uma democracia falsa. Nós temos a democracia que a grande burguesia, os ricos, os militares deixam o povo ter. Não viu ontem o comandante do Exército? E o que o outro general falou? Se não fizerem do jeito que eles querem, vai ter derramamento de sangue. Derrubam o governo. Nas armas.

 

- Eu vi isso - o cobrador responde.  – Eu vi.

 

Nessa manhã do dia do julgamento no STF, eu não podia ter lido os comentários da extrema-direita na internet do outro dia:  

 

“General Eduardo Villas Bôas Intervenção Militar Já.... Defendam Lula, só assim a intervenção militar vem logo...  Primeira coisa a ser feita, assim que a intervenção militar vier, é rasgar essa Constituição de merda feita por políticos corruptos em 1988”

 

Eu não havia ainda nem conhecido o vergonhoso voto da ministra Rosa Weber, que ao manifestar uma opinião afirmou que não seguia a própria opinião. Seguia a do comando militar, ela poderia ter dito. Mas no ônibus eu falava sob a guarda da previsão do cobrador. E continuo, com o máximo de didatismo, numa aula para a qual não me preparei:

 

- Se Lula voltar, ele para com essa reforma trabalhista. É isso o que os grandes empresários não querem. É incrível como a televisão não mostra o maior desemprego dos últimos anos no Brasil. Ela esconde que o trabalhador está se virando como pode, sem carteira assinada, vendendo churrasquinho na esquina. Então, não temos desemprego, não é? Na França, está o maior protesto contra a reforma trabalhista deles lá.

 

- Eu vi.

 

- Aí vem a comentarista da tevê e fala: “os franceses não gostam muito de reforma...”. Então nós gostamos, não é?.    

 

- Eles querem escravos. Trabalhador ficou sem direito. Trabalha por hora – e o cobrador olha para o motorista, que apenas escuta. Os passageiros em silêncio apenas arregalam os olhos, numa expressão de quem vai falar e cala.

 

Sinto não ser um tribuno público, dos eloquentes, de oratória que levante a indignação popular. Eu não sou o que muito gostaria de ser. Consigo apenas rascunhar à distância, quando a memória organiza o que mal fiz. Então desço do ônibus sem o efeito desejado.     

 

Mas ontem, quando entrei no supermercado ouvi “A triste partida” na voz de Luiz Gonzaga. Que coincidência.  

https://www.youtube.com/watch?v=r-8rsqTJi-0

 

Me comoveu profundamente. Eu olhava as garrafas de vinagre por disfarce, mas nada via. Só me falava com a visão da música: “ah se o povo soubesse, ah se o povo adivinhasse o que vem”. Então o nada orador foi até o atendente no balcão de frios. Olhei de lado, só estávamos eu e ele. Eu sei a quem me dirijo, pois a maioria dos trabalhadores ali vêm do interior de Pernambuco. E lhe digo:

 

- Estava tocando há pouco “A triste partida” com Luiz Gonzaga. Você ouviu? É de Patativa do Assaré, um grande poeta. A letra fala do nordestino que foge da seca e não pode mais voltar pra sua terra

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