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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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A falsa dicotomia entre identitarismo e luta de classes

Quem contrapõe a luta identitária à luta de classe, tentando conformá-la aos estreitos limites do capitalismo, este sim é um traidor da classe trabalhadora e da luta pela emancipação dos povos

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Marx morreu. Celebremos sua ressurreição! Sem nenhuma fé divinal e com muita ironia contra seus apressados coveiros, de um morto muito vivo.

Ao ler o diagnóstico açodado de alguns comentaristas sobre a eleição e a “nova esquerda”, o relato da maioria deles é de sobrepor a luta identitária, a luta LGBTI, das mulheres, dos negros, ecológicas, à luta de classes, determinar a morte desta e o nascimento de uma nova esquerda, na qual cada um vai cuidar de seu quadradinho: 

Os LGBTIs só cuidarão da luta contra a discriminação heteronormativa;

as mulheres só lutarão contra o machismo;

os negros só lutarão contra o racismo. 

Sem nenhum fio condutor ou unificador desta luta. Este raciocínio ainda pode ser aplicado à luta dos jovens e ecológica. Cada um que cuide de seu quadrado. Desaparece a luta anticapitalista, o imperialismo, a necessidade de mudança estruturais, a luta contra a miséria, neste raciocínio, que é um raciocínio em si miserável. O problema passa a ser os “velhos partidos de cunho socialista e social democrata”, que “não despertaram para as novas formas de organização, mais democráticas e horizontais”.

Sempre gosto de citar Sartre para defender Marx de seus detratores. Sartre dizia que o marxismo era a única filosofia viva. O que ele queria dizer com isto? Ele, que nunca se afirmou como marxismo, dizia que o marxismo era a única crítica total ao sistema capitalista, e que ele só morreria junto com seu objeto de crítica, o capitalismo. Também dizia que, muitas das críticas ao marxismo retomavam argumentos pré-marxistas. Um existencialista fenomenologista, que intuía que nem o existencialismo, nem a fenomenologia e nem a pós modernidade davam conta ou eram eficazes no combate ao capitalismo, e que, para isto, era necessário, sempre que se fosse fazer a luta sistêmica, retomar e utilizar Karl Marx. 

Os apóstatas do identitarismo antimarxista abusam da falta de leitura de Marx. Sartre era um crítico honesto, posso até afirmar que ele ou compreendeu mal ou recusou-se a aceitar certos pontos do materialismo dialético, mas não posso acusá-lo de ignorância ou má-fé. O mesmo não posso dizer de certos críticos identitários do marxismo, que, ou não leram Marx, ou o leram muito mal, e chegam a conclusões tacanhas de um Marx racista ou machista. E estou falando do teórico Marx, não do sujeito Marx e de sua vida comezinha familiar. Dois escritos de Marx equivocados sobre o papel do imperialismo (“Resultados futuros da dominação britânica nas Índias” e a reportagem sobre a guerra entre os Estados Unidos com o México), não bastam para elidir o acerto da maior parte da sua teoria e do papel dos monopólios, do imperialismo, da denúncia do saque e da pilhagem e da defesa corajosa da luta contra a dominação dos povos. O erro de análise explica-se muito mais por uma visão hegeliana de fases de evolução da humanidade, em que o capitalismo representa uma fase intermediária da evolução humana, que destrói os restos feudais e prepara caminho então para a luta numa fase superior pelo socialismo.

Marx não viveu para ver o capitalismo imperialista hegemônico consolidado, portanto, não poderia criar a teoria do desenvolvimento desigual e coordenado, posterior a ele, e que explica como o imperialismo convive com formas politicas e econômicas arcaicas, desde que não tenha ameaçada sua hegemonia. Isto está muito longe de manifestações racistas e ou machistas. Até porque, desde seu nascedouro, sem usar o termo identitário, o marxismo foi abraçado e acolhido pelas mulheres operárias porque defendia IGUALDADE ABSOLUTA DE DIREITO E REPRESENTAÇÃO ENTRE MULHERES E HOMENS. 

Não é possível falar de luta de emancipação das mulheres sem falar das mulheres socialistas e marxistas, de forte influência marxista. Vera Sassulich, Clara Zetkin, Madame Kolontay, Rosa Luxemburgo, Kupskraya, Pagu, todas foram mulheres comunistas, marxistas e feministas, porque no seu bojo a teoria marxista já carregava o feminismo. O feminismo liberal foi gestado bem depois.

Mas saindo da teoria e voltando as eleições de 2020, este povo que vive tentando matar Marx quer jogar a criança fora junto com a água suja do banho. No quadro geral das eleições, a esquerda tradicional não ganhou votos, perdeu, decresceu em 10% em relação a 2016, mas recuperou-se com relação a 2018. E sim, temos que saudar que jovens mulheres, mulheres negras, gays, lésbicas, travestis, transexuais, jovens negros e indígenas de ambos os sexos tenham sido eleitos. Mas é bom lembrar que parte destes eleitos não foram em partidos de esquerda e sequer vão defender pautas emancipatórias em seus partidos de direita. Ou esquecemos do negro que comanda hoje a Fundação Palmares, ou de Hélio Negrão? Não basta ser negro, tem que defender uma política antirracista. 

A segunda questão é a colcha de retalhos. O capitalismo sempre teimar em cooptar e domesticar nossas lutas para que elas se tornem aceitáveis ao regime. Guy Debord chamaria isto de “espetacularização da luta”, que já se acomoda à priori nos estreitos limites do sistema. Em lugar de falarmos em emancipação e superação do capitalismo, falamos em boicote como consumidores das lojas que “não se comportam bem, diante da pauta identitária”. É óbvio que isto é importante, mas tão importante quanto boicotar o Carrefour, que acaba de surrar um senhor negro de 60 anos até a morte. é preocupar-se com a grande massa de negras e negros que vivem nas favelas e estão impedidos de comer porque estão desempregados e vivem na miséria. A desigualdade estrutural capitalista, advinda da escravidão, não será superada nos estreitos marcos do capitalismo, ou do boicote a marcas que cometem racismo institucional.

A única maneira de concatenar tantas lutas, a dos negros, a das mulheres, a dos LGBTIs, a dos idosos, a dos jovens, a ecológica, é transformá-la numa luta estratégica global anticapitalista. O sistema que estrutura e se estrutura na desigualdade social, no racismo, no machismo, no desemprego da juventude, na falta de seguridade social para os idosos, na ameaça de desastre ecológico para o planeta tem nome: CAPITALISMO. A luta anticapitalista é a única capaz de coordenar e sistematizar todas as lutas identitárias contra um inimigo comum. 

Quem reduz a luta identitária a uma luta sem concatenação com as outras é um traidor do movimento, porque eterniza a desigualdade e a exploração, além de calar-se diante de outras lutas que vão além da luta identitária: a luta pela emancipação do país, a luta por uma educação de qualidade pública acessível a toda a população, a luta por uma saúde e uma seguridade sociais públicas acessíveis a toda a população, a luta pela segurança alimentar, a luta pela reforma agrária, todas lutas ANTICAPITALISTAS.

Não há separação ou antagonismo das lutas identitárias à luta pelo socialismo. É sectário e tolo o marxista, o socialista que hoje não queria participar destas lutas. De outro lado é um sectário reacionário pró exploração capitalista aquele que quer separar as lutas identitárias da luta global contra o sistema que mantém a desigualdade e o preconceito. Não queremos apenas que os negros e negras sejam respeitados dentro da favela, queremos que se emancipem das condições de favelado e tenham condições de vida dignas. 

A favela é a nova senzala, não basta ter respeito a quem mora na favela, temos que tirar toda e qualquer pessoa da condição de morar em moradias sub-humanas. E isto só se faz expropriando os expropriadores e dividindo a riqueza entre toda a população, tomando os 90% da riqueza dominados por 1% da humanidade e redistribuindo entre os 99% restantes. A terra produz o suficiente para todos, o problema é a repartição. Então, não, os comunistas e socialistas não são contra nenhuma luta identitária, só as colocam sempre coordenadas com a luta anticapitalista.

Quem contrapõe a luta identitária à luta de classe, tentando conformá-la aos estreitos limites do capitalismo, este sim é um traidor da classe trabalhadora e da luta pela emancipação dos povos.

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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