A fé sob medida: J.D. Vance no Vaticano e o neocatolicismo da extrema direita
O verdadeiro escândalo do nosso tempo não é a ausência de fé, mas a abundância de falsos profetas
O uso político da religião por líderes conservadores dos EUA encontra seu espelho no silêncio cúmplice de padres midiáticos no Brasil — enquanto vozes proféticas como a de Júlio Lancellotti são isoladas e atacadas.
Enquanto o vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, se ajoelha com a família na Basílica de São Pedro durante a Semana Santa, o gesto público de fé serve menos à espiritualidade do que à performance política. A direita norte-americana descobriu no catolicismo não apenas uma linguagem sagrada, mas uma ferramenta ideológica. Cruz na testa, reverência à liturgia e discursos recheados de Agostinho e Girard compõem a nova gramática do que já se chama de “neocatolicismo MAGA”.
Vance, convertido ao catolicismo em 2019, tornou-se símbolo desse movimento. Em encontros públicos, usa argumentos teológicos para defender políticas migratórias restritivas. Recentemente, invocou o conceito de Ordo Amoris, de Agostinho, para justificar que o amor aos de perto — vizinhos, familiares, cidadãos — deve se sobrepor ao amor aos estrangeiros. Uma interpretação conveniente, que contradiz frontalmente a mensagem cristã de acolhimento — e que ignora por completo as palavras do Papa Francisco, que vem há anos denunciando políticas de exclusão e defendendo os direitos dos migrantes. Francisco, aliás, não compactua com nada disso. Tem sido uma das poucas vozes na hierarquia católica a confrontar o autoritarismo, o racismo e o individualismo feroz travestido de fé. Por isso mesmo, é atacado, desautorizado e ignorado por essa nova direita católica, que prefere moldar um cristianismo sob medida aos seus próprios interesses de poder.
Nos EUA, o fenômeno vai além de Vance. Marco Rubio ostentou publicamente o sinal da cruz na testa em rede nacional. Peter Thiel, bilionário do Vale do Silício, injetou dinheiro em projetos católicos e cita Girard, filósofo francês conhecido por sua teoria do desejo mimético — segundo a qual imitamos os desejos dos outros, o que leva à rivalidade e à busca por bodes expiatórios para justificar um capitalismo monopolista travestido de espiritualidade. O neocatolicismo republicano constrói sua própria teologia — e não precisa do Papa para isso. A religião se transforma em marca. E como toda marca, é moldada conforme os interesses do mercado. Em tempos de guerra cultural, fé vira marketing: produto que imuniza contra críticas e confere verniz moral ao discurso conservador. A cruz deixa de ser símbolo de sacrifício para virar logotipo ideológico.
No Brasil, o mesmo mecanismo atua em outra chave: o silêncio. Aqui, a Igreja Católica institucional raramente se envolve nos grandes debates públicos. Padres com milhões de seguidores evitam tocar em temas incômodos, promovem uma fé despolitizada, moralista e inócua. Muitos se tornaram celebridades da devoção, mas são ausentes quando os pobres são massacrados ou quando políticas públicas perpetuam desigualdades. Nesse cenário, padre Júlio Lancellotti representa uma exceção radical. Atuando junto à população em situação de rua, denunciando violência policial e violações de direitos humanos, Lancellotti encarna um cristianismo ético, profético, encarnado no mundo real. Por isso mesmo, é alvo constante da extrema direita. Mas o que mais escandaliza não são os ataques — são os silêncios. Onde estão os outros religiosos diante das ameaças que ele sofre? Onde estão os colegas de púlpito e de Instagram que poderiam defendê-lo?
A resposta é desconfortável: estão ausentes. Preferem neutralidade. Ou, pior, neutralidade apenas aparente, que esconde conivência. Muitos se calaram também diante da pandemia, da fome, da violência nas periferias, da instrumentalização da fé por figuras políticas que não têm qualquer compromisso com os valores evangélicos. A fé virou entretenimento. O púlpito virou palco. A omissão virou liturgia. Não é preciso ser cristão para perceber o abismo entre esse catolicismo do espetáculo e a ética que figuras como Dom Helder Câmara representavam. Em plena ditadura, Dom Helder denunciava a tortura e a miséria. Era vigiado, perseguido, censurado. Mas falava. Hoje, sob a aparência de normalidade democrática, a maioria prefere o silêncio seguro ao risco da coerência.
Escrevo em plena Semana Santa porque é preciso mais uma vez apontar o óbvio que tantos fingem não ver. O cristianismo, mesmo como tradição cultural, carrega uma potência ética que está sendo esvaziada e distorcida. Escrevo porque a fé, quando usada para oprimir, excluir ou justificar o poder, deixa de ser fé — e se transforma em ideologia com roupa de missa. O caso Vance não é uma excentricidade americana. É um sinal dos tempos. A direita soube preencher o vácuo deixado por instituições que abandonaram seu papel crítico. E no Brasil, o catolicismo hegemônico parece mais preocupado com manutenção de influência do que com os ensinamentos do Evangelho. A religião, quando se torna conveniência, perde sua capacidade de transformação.
O verdadeiro escândalo do nosso tempo não é a ausência de fé, mas a abundância de falsos profetas. Não são os ateus e os comunistas que ameaçam a Igreja — são os próprios devotos que a transformaram em palanque. E é justamente por isso que o Papa Francisco, talvez uma das últimas vozes verdadeiramente cristãs dentro da hierarquia católica, é constantemente atacado, ignorado ou descartado por aqueles que hoje usam o nome de Deus como ferramenta de poder. Francisco denuncia o ódio travestido de moral, confronta os donos da fé-espetáculo, e reafirma o Evangelho como mensagem de justiça e cuidado com os pobres. Ele não compactua com o que fazem em seu nome — e por isso incomoda. E enquanto padres como Júlio Lancellotti são deixados sozinhos, ajoelhados nas calçadas ao lado dos que ninguém vê, a extrema direita se ajoelha no Vaticano — com câmeras e holofotes. Porque hoje, mais do que nunca, a fé virou performance. E o silêncio, cumplicidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



