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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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A força criativa brasileira retoma seu lugar no mapa do cinema

Entre passado e presente, esses dois filmes compõem um só movimento: o retorno do Brasil ao cinema internacional com densidade, precisão e fôlego político

Wagner Moura em 'O Agente Secreto' (Foto: Divulgação)

Ainda Estou Aqui abre a porta; O Agente Secreto decide atravessá-la. E, ao fazê-lo, revela algo ainda maior: o gesto de insistir em existir. É como se dois filmes — diferentes em linguagem, estética e temperatura emocional — compusessem uma mesma frase histórica, um mesmo pulso nacional tentando, de novo, fazer-se ouvir em um país acostumado a conviver com o esquecimento. Trata-se, afinal, de uma dobradiça cinematográfica: o passado abre, o presente atravessa, e o futuro observa.

Quando Ainda Estou Aqui estreou mundialmente no Festival de Veneza em 6 de setembro de 2024, dirigido por Walter Salles e inspirado no testemunho real de Eunice Paiva sobre o desaparecimento de seu marido durante a ditadura militar, ficou claro que algo profundo estava se movendo. O filme ganhou o prêmio de Melhor Atriz para Fernanda Torres em Veneza; venceu ainda o Prêmio do Júri Ecumênico; e esse percurso culminaria, meses depois, na vitória histórica no Oscar de 2025, na categoria de Melhor Filme Internacional — o primeiro da história do Brasil. A data, 2 de março de 2025, tornou-se um marco: pela primeira vez, o Brasil testemunhava sua própria dor reconhecida como arte universal.

E não se tratava de mero triunfo estético. O país que, entre 2019 e 2022, havia visto sua política cultural desmantelada, suas instituições de fomento secarem e seus realizadores reduzidos a guerrilheiros da sobrevivência reencontrava, desde 2023, um ecossistema recomposto: o retorno do Ministério da Cultura, a reinclusão plena do audiovisual nas políticas públicas, a retomada dos editais, a reinstalação dos fundos setoriais. Um país que volta a financiar sua cultura volta, inevitavelmente, a produzir seu espelho. E, ao produzir seu espelho, volta a existir.

Mas o cinema não vive de passado: ele exige atravessamento. É por isso que a chegada de O Agente Secreto ao Oscar de 2026 não representa apenas continuidade — representa maturidade. Embora ambientado na década de 1970, o filme escancara as estruturas de poder que sobreviveram ao tempo e seguem operando — discretas, adaptadas, mas dolorosamente reconhecíveis no Brasil de hoje. O passado histórico é apenas o cenário; o tema, porém, continua sendo o país que ainda somos.

Kleber Mendonça Filho filma essa travessia com precisão, criando um thriller político em que cada gesto parece conviver com uma ameaça invisível. E no centro desse tabuleiro está Wagner Moura — não como estrela tentando brilhar acima do material, mas como intérprete que compreende a respiração subterrânea da história. “Quanto mais envelheço, mais procuro trazer de mim para o personagem. Arte e política estão muito próximas”, disse em entrevista ao The New York Times, que o incluiu entre as dez atuações mais impressionantes de 2025. Sua fala revela o método, mas também o risco: quanto mais o ator se aproxima de si, mais o país se reconhece na tela.

Como mestre em cinema pela Universidade de Brasília e ex-jurado do Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, algumas cenas permanecem alojadas como cicatriz estética. São momentos que não precisam de teoria — apenas de honestidade de espectador.

A primeira acontece no coração do filme: um silêncio demorado, espesso, que antecede a descoberta de um arquivo manipulado. A câmera observa o personagem observando — e essa duplicidade produz um desconforto que apenas o grande cinema é capaz de sustentar. A sensação é que a verdade, ali, não está sendo revelada, mas capturada. A sequência me devolveu às discussões acadêmicas da UnB sobre o poder da pausa: o cinema, quando domina o silêncio, não narra — denuncia.

A segunda cena é uma travessia a céu aberto. Moura caminha, o corpo tenso, os olhos vigilantes, e o espaço ao redor parece conspirar contra ele. Não há heroísmo, não há glória; há o peso de saber que cada passo pode alterar não apenas seu destino, mas o destino de toda a engrenagem política que o cerca. Lembrei-me imediatamente de debates que atravessaram anos de pesquisa: a ética filmada não é um conceito, é um corpo em deslocamento.

A terceira cena é um encontro com uma criança. Não há sentimentalismo. Não há alívio. Há apenas um instante de humanidade crua, uma fresta minúscula de inocência que ilumina — e, ao mesmo tempo, agrava — tudo que veio antes. Moura afirmou recentemente que “as crianças são os melhores atores do mundo, quando não foram domesticadas”. Essa cena confirma sua tese: a criança não interpreta; existe. E é essa existência que devolve ao filme o que lhe falta no mundo adulto — a possibilidade, ainda que remota, de futuro.

Se essas cenas permanecem, é porque abrem espaço para outra constatação: O Agente Secreto não é um filme sobre os anos 1970, mas sobre a permanência das linhas subterrâneas que conectam aquele período ao presente. A narrativa funciona como radiografia de uma arquitetura de poder que nunca foi plenamente desmontada — apenas trocou de nomes, de métodos, de vocabulário. O filme não acusa o passado; revela sua continuidade.

É por isso que a recepção internacional tem sido tão vigorosa. A Variety — a mais influente publicação de bastidores de Hollywood — projeta que o filme pode alcançar três indicações ao Oscar: Melhor Filme Internacional; Melhor Ator para Wagner Moura, o que seria um feito inédito para um intérprete brasileiro; e a surpreendente possibilidade de concorrer a Melhor Filme, categoria máxima, território onde nações cinematográficas consagradas lutam há décadas para entrar. Já o Globo de Ouro reconheceu Moura na categoria de Melhor Ator em Filme de Drama, consolidando sua atuação entre as mais potentes do circuito internacional recente — uma indicação que o posiciona no mapa das premiações com força inédita para o Brasil.

A repercussão ultrapassou o campo dos prêmios. O New York Times, ao listá-lo entre os dez intérpretes mais impressionantes do ano, destacou sua capacidade de atuar com a “alegria indomesticável das crianças”. A frase acendeu uma memória pessoal: durante os anos de júri no Festival de Brasília, sempre houve uma atenção especial aos atores que conseguiam romper o molde, que fugiam da previsibilidade, que permitiam ao espectador testemunhar não uma performance, mas um estado.

É exatamente isso que Moura oferece. Ele atua como quem sabe que o cinema brasileiro, depois de sobreviver a um período de asfixia institucional, não pode mais entregar personagens previsíveis, narrativas mornas ou estética de conveniência. Cada gesto na tela é um lembrete de que o país passou perto demais de perder sua cultura; e que, agora, cada obra precisa afirmar a própria existência como quem ergue um grito.

No arco que une Ainda Estou Aqui e O Agente Secreto, há algo maior do que o Oscar — embora o Oscar, em sua dimensão simbólica, funcione como amplificador do gesto. O que realmente está em jogo é o retorno da autoestima cinematográfica brasileira. Um país que volta a se ver volta a imaginar-se. E um país que volta a imaginar-se volta a disputar sua narrativa no mundo.

O que esses dois filmes demonstram, com clareza luminosa, é que o cinema brasileiro não precisa mais pedir autorização para existir. Ele existe porque insiste. Existe porque produz suas memórias e suas denúncias. Existe porque recusa o conforto do silêncio. Existe porque sabe que a história, quando não é filmada, acaba recontada por quem detém o poder — e raramente a conta é justa.

Se Ainda Estou Aqui abriu a porta com a dignidade de quem restitui nomes apagados, O Agente Secreto atravessa essa porta com a coragem de quem enfrenta as sombras que ainda comandam o país. Juntos, eles dizem o essencial: o Brasil voltou a filmar. E um Brasil que filma é um Brasil que respira.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.