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Liszt Vieira

Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92

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A governabilidade e seus limites

Devemos abrir mão de pautas caras ao campo progressista em nome da governabilidade? Devemos cruzar os braços e aceitar tudo?

Plenário da Câmara dos Deputados (Foto: REUTERS/Adriano Machado)
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(Publicado no site A Terra é Redonda)

“Temos ódio e nojo à ditadura. Traidor da Constituição é traidor da pátria” (Ulisses Guimarães).

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O saudoso cientista político Wanderley Guilherme dos Santos dizia que, no Brasil, a esquerda tinha 30% do eleitorado, a direita tinha outros 30%, e os restantes 40% era constituído pelo eleitorado flutuante que definia eleição. Depois do impeachment da ex presidente Dilma Rousseff, da fortíssima campanha da mídia de apoio à Lava Jato e à prisão de Lula, de apoio ao governo de Michel Temer e à candidatura de Jair Bolsonaro, a direita avançou, mas mesmo assim, por várias razões, perdeu a eleição ano passado, embora por pouco.

A tendência, com o avanço do governo Lula, é a situação voltar aos trilhos usuais, e a direita (incluindo a extrema direita) retornar à sua percentagem tradicional de 30%. Mas a necessidade de fazer aliança com a direita no Congresso, chamada eufemisticamente de Centrão, leva o governo a oferecer cargos importantes para seus futuros adversários. Registre-se que não faltou quem alertasse Lula ano passado sobre a necessidade de fazer uma campanha política para que os eleitores da chapa Lula-Alckmin votassem nos parlamentares fechados com essa chapa, mas isso não ocorreu. Lula pareceu confiar na sua grande capacidade de negociação.

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A questão atual é que, por razões de governabilidade, a direita tende a ocupar espaços de poder no governo que serão utilizados depois para apoiar candidatos de direita ou mesmo de extrema direita. Devemos cruzar os braços e aceitar tudo em nome da governabilidade? Segundo declarou João Pedro Stedile, dirigente do MST, “Se governo não investir nas mídias populares, vai se arrepender” (Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, 29/8/2023).

Devemos abrir mão da luta pelos direitos das mulheres, pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, pelos direitos do grupo LGBTQIA+, e pela descriminalização do uso de droga, por exemplo? Segundo a respeitada jornalista Maria Cristina Fernandes, do jornal Valor econômico, as decisões conservadoras do novo Ministro do STF Cristiano Zanin estariam alinhadas com pedidos do presidente Lula, interessado em conquistar apoio na área conservadora e evangélica (Valor, 31/8/2023).

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Já está em andamento a ocupação de Ministérios e altos cargos pela direita. Políticos ou técnicos que apoiaram o impeachment da ex presidente Dilma Rousseff, apoiaram a Lava Jato e a prisão de Lula e foram nomeados para altos cargos nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, estão sendo nomeados de volta pelo atual governo Lula.

Entre vários exemplos, um caso interessante seria a Caixa Econômica. Segundo a imprensa, a atual presidente da Caixa, Rita Serrano, funcionária de carreira, deve ser substituída por Margarete Coelho, indicada pelo deputado Arthur Lira, líder do Centrão (Estadão, 29/8/2023). De acordo com o professor Fernando Nogueira Costa, da economia da Unicamp e antigo vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa entre 2003 e 2007, a Caixa Econômica tem um papel estratégico “por executar, além da política de assistência social (Bolsa Família e outras), a política habitacional, a mais decisiva para a mobilidade social das famílias pobres. A entrega das chaves da “casa própria” é vista como capaz de render dividendos políticos”.

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Na realidade, já são visíveis os benefícios trazidos pelo atual governo: além do inegável sucesso na área internacional e nas políticas sociais, o PIB de 0,9% do segundo trimestre projeta um crescimento este ano em torno de 3%, e o desemprego caiu para 7,9%, o menor índice desde 2014. Mas, com uma economia predominantemente neo-extrativista e agroexportadora, o Brasil sofreria fortes impactos em caso de uma crise econômica mundial cujos contornos iniciais, segundo muitos analistas, já se desenham no horizonte.

É verdade que o governo terá ganhos com os acordos garantindo o apoio da maioria do Congresso a projetos governamentais importantes. Mas o preço a pagar será alto. A médio prazo e a partir do próprio aparelho de Estado, a direita – encastelada em altos cargos do aparelho do Estado e fortalecida com instrumentos concretos de “persuasão”, como prestígio, verbas orçamentárias, além dos recursos liberados para as emendas parlamentares – poderá reproduzir e conquistar novos apoios políticos para ganhar futuras eleições.

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Todas essas questões, por mais importantes que sejam, não se comparam aos riscos para a democracia embutidos na chamada questão militar. Os militares que apoiaram ativamente a tentativa de golpe em 8 de janeiro serão punidos ou preservados? Em 1964, os militares golpistas vitoriosos expurgaram os legalistas. Segundo alguns analistas políticos, existe hoje uma espécie de pacto entre os militares. Se os golpistas ganhassem, os legalistas seriam poupados. E vice versa. Os legalistas hoje trabalham para que nenhum militar golpista seja punido. O representante político dessa posição é, evidentemente, o Ministro da Defesa.

Em nome da pacificação e da governabilidade, devemos abrir mão da exigência de punir os militares golpistas que apoiaram, direta ou indiretamente, a tentativa de golpe em 8 de janeiro? Poupar e anistiar militares golpistas não seria uma fuite em avant ou, em bom português, uma tentativa de empurrar com a barriga? Não estaríamos, mais uma vez, poupando os militares criminosos, como os que torturaram e assassinaram presos políticos durante a ditadura militar? E o que dizer do Alto Comando Militar que, com o Relatório do Riocentro em 1981, transformou uma ação terrorista de militares que iria matar milhares de pessoas em atentado contra dois militares transformados em heróis por uma história da carochinha que não enganou ninguém e envergonhou o Exército?

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Já está mais que na hora de decidir se a lei vale para todos. Na Argentina, Chile e Uruguai, muitos militares que cometeram crimes contra a democracia e os direitos humanos foram punidos. No Brasil, militar é tabu e, como todo tabu, intocável. A tradição brasileira é ignorar ou anistiar os crimes cometidos pelos militares. Levando em conta apenas a segunda metade do século passado em diante, tivemos a tentativa de golpe contra o presidente eleito Getúlio Vargas que, com seu suicídio em 1954, adiou por 10 anos o golpe militar, tivemos as tentativas de golpe para impedir a posse e o governo do presidente eleito Juscelino Kubitschek, os levantes de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), bem como o veto militar à posse do vice-presidente João Goulart em seguida à renúncia do então presidente Jânio Quadros em 1961.

Mas o quadro político hoje é completamente diferente. Antes, os militares levantavam a bandeira da luta contra a corrupção e contra o comunismo. Hoje, os próprios militares estão sendo acusados de corrupção e não há mais o pretexto do comunismo nem a guerra fria que o alimentava. As inúmeras denúncias de corrupção no governo de Jair Bolsonaro, que contou com o apoio e participação efetiva de oficiais das Forças Armadas, colocaram os militares na defensiva, eliminando a dimensão moral do apoio anterior de que desfrutavam em vários segmentos sociais.

Cabe aqui relembrar a famosa máxima de Mao Tsé Tung (Mao Zedong): “Quando o inimigo avança, nós recuamos. Quando o inimigo estaciona, nós fustigamos. Quando o inimigo recua, nós avançamos”. Os militares, envolvidos com corrupção e com tentativa de golpe contra a democracia, recuaram. A hora é de avançar para acabar de vez com a tutela militar e com os privilégios dos militares em termos salariais e previdenciários.

Mas não sabemos se isso realmente vai acontecer. Se não ocorrer, a democracia novamente estará em risco no futuro. Enquanto a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI) parece avançar no sentido de incriminar os generais golpistas e outros altos oficiais, o governo Lula é pressionado para fechar os olhos e anistiar os militares que tentaram em 8 de janeiro derrubar a democracia para implantar uma ditadura. Até agora, pelo menos, tem prevalecido um tom pacificador no espírito de 7 de setembro (Correio Braziliense, 4/9/2023).

Além disso, temos pela frente uma outra dimensão da questão militar. O Exército brasileiro está organizado segundo conceitos do século XIX. Hoje, com guerra aérea usando drones, ele está completamente desatualizado e superado. Os quartéis para “guardar a fronteira” chegam a ser ridículos. Como não existe inimigo externo e o inimigo interno inventado como substituição deixou de existir, o Exército brasileiro ficou sem função, sem justificação em face de uma doutrina militar atualizada.

A Marinha e a Aeronáutica teriam mais funções a desempenhar numa guerra moderna que, no caso do Brasil, não está no horizonte, nem há previsibilidade de que venha a estar. Segundo o professor Manuel Domingos Neto, especialista na questão militar, “a Força Terrestre resiste em admitir a primazia da Aeronáutica e da Armada na Defesa Nacional”. E, no mesmo artigo, afirmou: “Corporações militares são ferramentas da política externa, não têm competência para dirigir os negócios da defesa” (A Terra é Redonda, 23/8/2023).

Assim, caberia ao governo liderar uma grande Conferência junto com as Forças Armadas para redefinir uma Nova Política de Segurança Nacional. Para isso, será necessário qualificar os oficiais superiores que, em sua maioria, são incompetentes e até mesmo ignorantes, como vimos pelo exemplo dos generais que ocuparam altos cargos no governo passado. Em vez de conspirar golpes de Estado e defender os militares que cometeram crimes, os altos oficiais das Forças Armadas deviam se preparar para entender as grandes questões geopolíticas do mundo contemporâneo como, por exemplo, a tendência à multipolaridade em substituição à então prevalente hegemonia unilateral dos EUA.

Tudo isso coloca as forças políticas que defendem a democracia diante de um desafio. Quais são as questões de que podemos abrir mão e fazer concessões, e quais são as nossas “cláusulas pétreas” a que não podemos renunciar sob pena de desfigurar nossa identidade política? Claro que cada grupo social tem sua agenda própria, mas os partidos políticos – em vez de se preocuparem apenas com cargos no governo e com as eleições – deveriam apresentar um Programa contemplando os pontos que podem ser negociados e aqueles essenciais que, por sua natureza constitutiva da democracia, são inegociáveis.

Entre essas questões inegociáveis, deve constar a punição dos militares e civis que cometeram crimes na tentativa de golpe contra a democracia em 8 de janeiro último. Afinal, nas palavras do então deputado Ulisses Guimarães, um dos grandes líderes da redemocratização do país nos anos 1980, “traidor da Constituição é traidor da pátria”. Se passarem panos quentes, se prevalecer anistia aos golpistas e se fecharem os olhos para não punir os militares envolvidos, mais adiante teremos novas tentativas de golpe militar contra a democracia e os direitos humanos previstos na Constituição. É a lição da história: os erros do passado, se ignorados, retornam no futuro.

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