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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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A guerra começou e não haverá recuo

Lula e Trump já estão em combate

Bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos (Foto: Reuters/Evelyn Hockstein)

Por Reynaldo Aragon e Sara Goes

Uma nova era de confrontos explícitos entre o Brasil e os Estados Unidos está em curso, e ela não será resolvida com diplomacia protocolar ou comunicados mornos. Não se trata de um ruído passageiro ou de desentendimentos pontuais. Trata-se de uma ruptura objetiva entre projetos de mundo incompatíveis: de um lado, um Brasil soberano, articulado com o BRICS, voltado para o Sul Global, empenhado em construir infraestrutura própria, autonomia tecnológica e autoridade institucional sobre seu território físico e digital; do outro, o império estadunidense em crise, disposto a qualquer ação para manter sua hegemonia continental, inclusive sabotando o desenvolvimento de países que um dia considerou “aliados submissos”.

A linha de ruptura foi cruzada. As tarifas punitivas aplicadas pelos EUA sobre o aço, o alumínio, mel, frutas, o suco de laranja e componentes tecnológicos brasileiros não são meros instrumentos comerciais: são mísseis diplomáticos disfarçados de política alfandegária. A mensagem é clara: regulem as big techs e enfrentarão o peso do império. Mas o que o governo Lula respondeu, sem recuar um milímetro, foi ainda mais claro: o Brasil não será colônia de novo.

A escalada vinha sendo preparada nos bastidores desde que o governo brasileiro e o Supremo Tribunal Federal, liderado por Alexandre de Moraes, iniciaram um cerco inédito às plataformas digitais que sustentam financeiramente e algoritmicamente o ecossistema da extrema direita global. Foi a primeira vez, em décadas, que um país do hemisfério sul ousou confrontar os interesses das big techs em nome da democracia e da soberania informacional. E foi também a primeira vez que um governo do sul global, como o de Lula, articulou esse enfrentamento como parte de um projeto geopolítico mais amplo: integrar-se ao BRICS, fortalecer a cooperação Sul-Sul e construir rotas logísticas, energéticas e digitais fora do eixo de controle anglo-americano.

É nesse contexto que a ofensiva estadunidense precisa ser compreendida: não como defesa da democracia, mas como reação desesperada à autonomia. A condenação de Jair Bolsonaro é apenas a superfície do enredo. O que realmente está em jogo é o enfraquecimento, pelo exemplo brasileiro, da doutrina de Monroe reeditada em código-fonte, aquela que garante aos EUA domínio total sobre as redes, as narrativas, os mercados e os regimes políticos da América Latina. O Brasil, hoje, está minando essa doutrina de dentro, com legitimidade institucional, apoio popular e respaldo internacional.

Trump sabe disso e a elite de Washington também. E a resposta não será simbólica. O que está em curso é uma guerra fria de novo tipo, uma guerra híbrida entre o imperialismo em decadência e o protagonismo do Sul Global. O Brasil é o centro desse conflito. E este artigo é um alerta: não haverá recuo.

Ao anunciar medidas concretas para regulamentar as plataformas digitais,  inclusive com sanções diretas a empresas que se recusassem a moderar conteúdos golpistas, criminosos ou antidemocráticos, o Brasil tocou em um nervo exposto do sistema de poder norte-americano: o controle da infraestrutura informacional global.

A ofensiva legislativa e jurídica brasileira, impulsionada tanto pelo Executivo quanto pelo Supremo Tribunal Federal, ganhou forma com o novo marco regulatório das plataformas, que não apenas exigia responsabilidade das empresas pela disseminação de desinformação e discurso de ódio, mas também rompia com a lógica de imunidade absoluta das big techs — uma lógica construída e protegida há décadas a partir dos interesses de Washington, do Vale do Silício e da inteligência estadunidense.

O projeto brasileiro não nasceu isolado. Ele dialoga com movimentações semelhantes em países como a Índia, Indonésia, África do Sul e União Europeia. Mas o Brasil foi o primeiro da América Latina a propor uma regulação sistêmica, com instrumentos coercitivos e uma arquitetura institucional minimamente preparada para enfrentar a máquina digital do império. Isso fez do país um alvo imediato.

A pressão culminou numa aliança aberta entre o Departamento de Estado, o Congresso republicano, os CEOs do Vale do Silício e a direita brasileira no Congresso Nacional, cujo objetivo principal era frear a regulação, sabotar o projeto de soberania digital e, de quebra, desmoralizar as instituições brasileiras. Mas essa aliança esbarrou em um problema de época: o bolsonarismo já não está no poder e sem o controle do Executivo, e sem apoio majoritário no STF, o campo entreguista pode latir, mas não pode mais morder. A retaliação estadounidense, portanto, precisa vir de fora e vem: em forma de sanções, sabotagens diplomáticas, campanhas internacionais de desinformação e tentativas de estrangulamento comercial.

O que está em jogo não é apenas a regulação de plataformas. O que está em jogo é a definição de quem controla a infraestrutura simbólica, econômica e cognitiva da América Latina. E nesse embate, o Brasil ousou dizer não.

O restante desta análise aprofunda três cenários possíveis para o Brasil até 2026, diante do novo tabuleiro geopolítico. A versão completa está disponível no site <código aberto>. Vale a leitura para quem quer entender o que está em jogo e por onde pode passar o futuro da nossa soberania.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.