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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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A guerra é o mal maior

A Rússia foi seduzida à guerra, porém isso não absolve o seu criminoso ato de agressão

(Foto: Reuters/Umit Bektas)
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Por Chris Hedges

(Publicado no ScheerPost, traduzido com exclusividade para o Brasil)

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Tradução e adaptação: Rubens Turkienicz, para o Brasil 247


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A guerra preventiva, seja no Iraque ou na Ucrânia, é um crime de guerra. Não importa se a guerra é lançada com base em mentiras e fabricações, como foi o caso no Iraque, ou por causa do descumprimento de uma série de acordos com a Rússia – incluindo a promessa de Washington de não estender a OTAN além das fronteiras da Alemanha unificada, de não posicionar milhares de tropas da OTAN na Europa Oriental, de não interferir nos assuntos internos de nações na fronteira com a Rússia e a recusa de implementar o acordo de paz Minsk II. Suponho que a invasão da Ucrânia nunca teria acontecido se essas promessas fossem cumpridas. A Rússia tem todo o direito de sentir-se ameaçada, traída e irada. Porém, entender não é perdoar. De acordo com as leis pós-Nuremberg, a invasão da Ucrânia é uma guerra criminosa de agressão.

Eu conheço o instrumento da guerra. A guerra não é uma política feita por outros meios. Ela é demoníaca. Passei duas décadas como correspondente de guerra na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Balcãs – onde cobri as guerras na Bósnia e no Kosovo. Carrego comigo os fantasmas de dúzias daqueles que foram engolidos pela violência – incluindo o meu amigo próximo Kurt Schork, correspondente da Reuters, que foi morto numa emboscada em Serra Leão junto com outro amigo, Miguel Gil Moreno.

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Conheço o caos e a desorientação da guerra, a constante incerteza e confusão desta. Num tiroteio, você só percebe o que está acontecendo a alguns metros no seu entorno. Você luta desesperadamente, e nem sempre com sucesso, para discernir de onde vêm os tiros, na esperança de evitar ser alvejado.

Senti a importância e o medo paralisante que, anos depois, se abate sobre mim como um trem de carga no meio da noite – deixando-me envolto em  espirais de terror, com o meu coração disparando e meu corpo pingando de suor.

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Ouví os gemidos dos convulsionados pela dor quando agarravam os corpos de amigos e familiares, incluindo crianças. Eu ainda os ouço. Não importa a língua. Espanhol. Árabe. Hebraico. Dinka (língua sudanesa). Servo-croata. Albanês. Ucraniano. Russo. A morte atravessa as barreiras linguísticas.

Eu sei o que os ferimentos parecem. Pernas explodidas. Cabeças implodidas numa massa polposa de sangue. Buracos abertos no estômago. Poças de sangue. Gritos dos que estão morrendo, às vezes pelas suas mães. E o cheiro. O cheiro da morte. O sacrifício supremo feito para benefício das moscas e das larvas.

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Fui espancado pelas polícias secretas do Iraque e da Arábia Saudita. Fui aprisionado pelos contras na Nicarágua – os quais falavam por rádio com a sua base em Honduras para ver se deviam me matar - e novamente em Basra, depois da primeira guerra no Iraque, sem jamais saber se eu seria executado, estando sob guarda constante e muitas vezes sem comida, bebendo em poças lamacentas.

A lição básica em guerra é que nós não temos importância enquanto indivíduos distintos. Nos tornamos números. Forragem. Objetos. A vida, antes preciosa e sagrada, torna-se sem significado, é sacrificada ao insaciável apetite de Marte. Em tempo de guerra, ninguém está isento disso.

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“Nós éramos descartáveis”, escreveu Eugene Sledge sobre as suas vivências como fuzileiro naval no Pacífico Sul, na Segunda Guerra Mundial. “Isso era difícil de aceitar. Viemos de uma nação e uma cultura que valoriza a vida e o indivíduo. Encontrar-se numa situação onde a sua vida tem pouco valor é a solidão última. É uma experiência vexatória.

O panorama da guerra é alucinógeno, desafia a compreensão. Você não tem ideia do tempo num tiroteio. Alguns minutos. Algumas horas. Num instante, a guerra oblitera lares e comunidades que eram familiares antes e deixa atrás ruínas fumegantes e um trauma que você carrega pelo resto da sua vida. Você não consegue compreender o que vê. Senti suficientemente o gosto da guerra, o suficiente do meu próprio medo, meu corpo transformado em gelatina, para saber que a guerra é sempre um mal, a mais pura expressão da morte, vestida em jargões patrióticos sobre liberdade e democracia e vendida aos ingênuos como um bilhete para a glória, a honra e a coragem. Ela é um elixir tóxico e sedutor. Como escreveu Kurt Vonnegut, aqueles que sobrevivem lutam depois para reinventar-se e ao seu universo – o qual, em algum nível, jamais fará sentido de novo.

A guerra destrói todos os sistemas que sustentam e nutrem a vida – familiar, econômica, cultural, política, ambiental e social. Uma vez iniciada a guerra, ninguém – mesmo aqueles que nominalmente estão incumbidos de fazê-la – pode adivinhar o que ocorrerá, como a guerra se desenvolverá, como esta pode levar exércitos e nações à loucura suicida. Não existem guerras boas. Nenhuma. Isso inclui a Segunda Guerra Mundial, que foi higienizada e mitologizada para celebrar falsamente o heroísmo, a pureza e a bondade dos EUA. Se a verdade é a primeira vítima na guerra, a ambiguidade é a segunda. A retórica belicosa aplicada e amplificada pela imprensa estadunidense – demonizando Vladimir Putin e elevando os ucranianos ao status de semideuses, exigindo uma intervenção militar mais robusta, junto com as sanções aleijantes cuja intenção é a de derrubar o governo de Vladimir Putin – é infantil e perigosa. A narrativa das mídias russas é tão simplista quanto as nossas.

Não havia discussões sobre pacifismo nos porões de Sarajevo quando estávamos sendo atingidos por centenas de bombas sérvias por dia e sob o fogo constante dos franco-atiradores. Fazia sentido defender a cidade. Fazia sentido matar ou ser morto. Os soldados sérvios no Vale de Drina, em Vukovar, Srebrenica, demonstraram amplamente a sua capacidade de infligir violências assassinas, incluindo o fuzilamento de centenas de soldados e civis e o estupro por atacado de mulheres e meninas. Mas isso não salvou qualquer um dos defensores de Sarajevo do veneno da violência, da força destruidora de almas que é a guerra. Conheci um soldado bósnio que ouviu um som atrás de uma porta quando estava patrulhando nos subúrbios de Sarajevo. Ele disparou uma rajada do seu fuzil AK-47 através da porta. Um atraso de alguns segundos em combate pode significar a morte. Quando ele abriu a porta, encontrou os restos ensanguentados de uma menina de 12 anos. A filha dele tinha 12 anos. Ele jamais se recuperou.

Apenas os autocratas e políticos que sonham com um império e a hegemonia global, com o poder quase-divino que vem com o uso de exércitos, aviões e frotas navais de guerra, junto com os mercadores da guerra, cujos negócios inundam países com armas – só estes lucram com a guerra. A expansão da OTAN à Europa Oriental rendeu bilhões em lucros para a Lockheed Martin, a Raytheon, a General Dynamics, a Boeing, a Northrop Grumman, a Analytic Systems, a Huntigton Ingalls, a Humana, a BAE Systems e a L3Harris. O abastecimento do conflito na Ucrânia lhes renderá muitos bilhões mais.

A União Europeia alocou centenas de milhares de euros para comprar armas para a Ucrânia. A Alemanha quase triplicará o seu orçamento de defesa para 2022. O governo Biden pediu ao Congresso dos EUA para prover US$ 6,4 bilhões de fundos para ajudar a Ucrânia, suplementando os US$ 600 milhões de ajuda militar à Ucrânia ao longo do ano passado. A economia de guerra permanente opera fora das leis de oferta e demanda. Ela é a raiz do atoleiro de duas décadas dos EUA no Oriente Médio. Ela é a raiz do conflito com Moscou. Os mercadores da morte são satânicos. Quanto mais cadáveres eles produzem, mais se incham as suas contas bancárias. Eles ganharam dinheiro com este conflito – um que agora flerta com o holocausto nuclear que exterminará a vida na Terra como nós a conhecemos. 

A perigosa e tristemente previsível provocação da Rússia – cujo arsenal nuclear coloca a espada de Dámocles sobre as nossas cabeças – ao expandir a OTAN foi entendido por todos nós que reportamos na Europa Oriental em 1989, durante as revoluções e o desmembramento da União Soviética.

Esta provocação, que inclui o estabelecimento de uma base de mísseis da OTAN a 100 milhas (cerca de 160 quilômetros) da fronteira da Rússia, foi insensata e altamente irresponsável. Jamais fez sentido geopolítico. No entanto, isto não desculpa a invasão da Ucrânia. Sim, os russos foram seduzidos. Mas eles reagiram apertando o gatilho. Isso é um crime. O crime deles. Rezemos por um cessar-fogo. Trabalhemos por um retorno à diplomacia e à sanidade, por uma moratória sobre embarques de armas para a Ucrânia e pela retirada das tropas russas do país. Tenhamos a esperança por um fim à guerra, antes que tropecemos num holocausto nuclear que devore a todos nós.

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