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Luciana Sérvulo da Cunha

Luciana Sérvulo da Cunha é documentarista, produtora e ativista com atuação internacional nas áreas de cultura, impacto social e direitos humanos. Foi diretora de patrocínios da Presidência da República e trabalhou na EBC/TV Brasil. É fundadora da ONG Revivarte e lidera o coletivo latino-americano #RespeitoEmCena

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A história que o Brasil teima em esquecer

Cinema, memória e os fantasmas de uma Nação

Cena do filme "Ainda estou aqui" (Foto: Divulgação)

O filme brasileiro Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar, pode não ser uma obra extraordinária do cinema, mas seu fenômeno certamente é. Pela primeira vez, a ditadura é retratada não pelos frios corredores do poder ou pela perseguição aos que lutavam contra as arbitrariedades dos anos de chumbo, mas pela vida íntima de uma família brasileira — uma família cuja história está para sempre marcada pela brutal engrenagem de um Estado que torturou e assassinou Rubens Paiva, um pai, um marido, um arquiteto, um cidadão. E, ao nos levar para dentro dessa casa, Ainda Estou Aqui faz algo sem precedentes: desenterra uma ferida que o Brasil nunca permitiu cicatrizar.Há uma beleza rara e assombrosa neste filme, uma beleza que não emerge do espetáculo ou da grandiloquência, mas da própria memória. A memória, no Brasil, é um território frágil e contestado. Um país que se recusa a lidar com seu passado permanece preso em um ciclo de esquecimento, permitindo que velhos fantasmas caminhem livremente entre os vivos. Mas o cinema — o cinema não esquece. E é precisamente através do poder da arte que Ainda Estou Aqui convoca os espectros da história, exigindo que nos lembremos, que olhemos, que sintamos o peso do que foi perdido.

Este é um filme que pertence, acima de tudo, às novas gerações — àqueles que não viveram a ditadura, mas herdaram suas consequências. Para eles, isso não é apenas um filme. É uma lição, um testemunho, um portal para um passado que seus livros didáticos não tocam. Quantos jovens sairão do cinema conhecendo, pela primeira vez, o nome Rubens e Eunice Paiva? Quantos verão suas próprias famílias refletidas na mãe frágil, mas inquebrantável, que luta para manter sua casa de pé? Quantos entenderão que a história não é apenas algo que aconteceu — é algo que continua acontecendo?

A força de Ainda Estou Aqui reside em sua harmonia. O elenco se move em um ritmo silencioso, mas devastador, com atuações impregnadas pelo peso da perda e pela resiliência do amor. A cinematografia captura a casa como um santuário e um campo de batalha, onde a ausência do pai é tão tangível quanto qualquer presença. A direção de arte dá vida ao passado, reconstruindo um Brasil que ainda pulsa sob a superfície do presente. E a trilha sonora, melancólica e original, paira como uma pergunta sem resposta: Quando este país finalmente enfrentará sua própria verdade?A arte tem o poder de transformar, de imortalizar, de resistir. E Ainda Estou Aqui é um ato de resistência — contra o silêncio, contra o apagamento, contra a impunidade que ainda mancha nossa história. É um lembrete de que a memória não é algo passivo; é algo pelo qual devemos lutar. E enquanto contarmos essas histórias, enquanto nos lembrarmos, a história permanecerá inacabada. O passado não está enterrado. Ele respira. Ele vive. Ele ainda está aqui.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.