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Carlos Eduardo Araújo

Bacharel em Direito, mestre em Teoria do Direito e professor universitário

17 artigos

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A imprensa! Que quadrilha!

Diante deste quadro desolar de controle da grande mídia sobre a informação e sua difusão o que nos cabe fazer? Explorar as brechas e contradições dentro da mídia hegemônica e levar adiante projetos jornalísticos alternativos no plano da contra hegemonia, notadamente os que rejeitam a mercantilização da informação e valorizam o pensamento crítico e emancipador

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Calma! A frase não é de minha autoria, mas sim do protagonista do romance “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Será que ele tem razão em lançar uma acusação tão grave à imprensa? A qual imprensa ele estaria se referindo? Já adianto que a crítica esboçada pelo personagem, uma espécie de Alter Ego do autor, é dirigida à grande imprensa que, naquele momento, se encontrava em estágio embrionário. “Recordações” foi o primeiro romance do célebre e brilhante escritor, publicado em 1909. Narra as desventuras do protagonista, que dá título à obra. Isaías é um jovem inteligente e intelectualmente precoce, que aos dezoito anos, cheio de sonhos e de autoestima, resolve deixar o interior do Rio de Janeiro para tentar a sorte na Capital, realizando seu idílico desejo de se tornar “Doutor”. 

Todavia, apesar de ser dotado de uma cultura e inteligência invulgares, muito superiores à média das pessoas à sua volta, seja no interior ou na Capital, carregava no seu corpo o estigma da cor, o qual se mostrará um obstáculo intransponível para a concretização de seus projetos. Conhece, de forma amarga, o preconceito, a humilhação e a tristeza. Sai do interior do Rio com uma carta de apresentação dirigida a um deputado, cuja base eleitoral situava-se em sua cidade natal. No entanto, não recebe a acolhida que esperava e vê seus minguados recursos se escoarem até deixá-lo à beira da miséria. 

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Acaba por ser acolhido na redação do jornal “O Globo”, no qual ingressa como contínuo, pelas mãos de um jornalista russo, colaborador do periódico. O nome que Lima Barreto dá ao jornal, no romance, é fictício e retrata, na verdade, o jornal “Correio da Manhã”, fundado por Edmundo Bittencourt, em 1901. Desse modo, não o devemos confundir com o jornal da família Marinho, que será fundado em 1925, quando o escritor já havia falecido. Será que o fundador de “O Globo”, ao escolher esse nome, tinha lido o “Recordações” de Lima Barreto? Difícil responder afirmativamente, porque seria escolher para dar nome ao nascente jornal, um epíteto tão duramente criticado pelo narrador Isaías Caminha. Contudo, a escolha do nome do jornal por Lima Barreto, se revelou profética, ironicamente, uma vez que as organizações Globo se tornaram o ícone da grande imprensa corporativa brasileira. 

Como dirá Alfredo Bosi, referindo-se a Lima Barreto: “A rotina do jornal onde arranjou emprego, com toda a sua galeria de tipos beirando a caricatura: enfim, o clima da fatuidade e subserviência que se respirava na imprensa e nos círculos literários da belle époque carioca ...” [1] É em contato com as redações dos jornais cariocas de sua época que Lima Barreto colherá o material para compor seu personagem, carregado de traços autobiográficos. Lima Barreto assim se refere ao romance, em carta a um amigo: “Mandei as Recordações do escrivão Isaías Caminha, um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar ...” [2]

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O romance, cuja publicação comemorou 100 anos, em 2019, se mostra mais atual e oportuno do que nunca. Lima Barreto revela, em sua obra de estreia, o âmago e os meandros da imprensa: os conchavos, os interesses, as mesquinharias, as vilanias, o poder, de que se faz portadora, e o uso que lhe dá, tudo dosado por uma crítica ácida, corrosiva e sem complacência. Ao tematizar o jornalismo, Lima Barreto buscou salientar que, na prática jornalística, frequentemente, a informação está em último plano: 

“A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzadores e formidáveis couraçados, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova... E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação... Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas [...] E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção das mediocridades, de modo que...

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— Você exagera, objetou Leiva. O jornal já prestou serviços.

Decerto ... não nego ... mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também... É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses... Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata ... Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal... Vocês vejam: antigamente, entre nós, o jornal era de Ferreira de Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano... Hoje de quem são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por diante. E por detrás dela estão os estrangeiros, senão inimigos nossos, mas quase sempre indiferentes às nossas aspirações...” [3] Grifos nossos.

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Um pouco mais de meio século antes da publicação do “Recordações”, entre os anos de 1836 e 1843, o prolífero e genial escritor francês Honoré de Balzac publicava seu romance “Ilusões Perdidas”, no bojo de sua “Comédia Humana”, no qual está delineado o papel da nascente imprensa francesa. Não é um papel edificante. “Da longa galeria de jornalistas que desfilam ao longo da trama, não escapa um – todos são tipos de caráter maleável e duvidoso. E dispostos a alienar seu talento e sua consciência a quem lhes pagar mais”, como dirá Rosângela Chaves. [4]

Os meandros do jornalismo denunciados por Balzac, na primeira metade do século XIX, com suas chantagens, covardias, hipocrisias, mentiras e infâmias, se coadunam com o diagnóstico que se depreende do “Recordações”. Talvez Lima Barreto tenha se inspirado no autor francês, do qual era leitor, mais antes de tudo vivenciou uma situação muito similar àquela denunciada por Balzac:

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“O jornal, em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos, e de um meio passou a ser um negócio. E, como todos os negócios, não tem fé nem lei. Todo jornal é, como disse Blondet, uma loja onde se vendem ao público palavras da cor que ele deseja. [...] Um jornal não é feito para esclarecer, mas para lisonjear as opiniões. Desse modo, todos os jornais serão, dentro de algum tempo, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos. Matarão as ideias, os sistemas, os homens, e, por isso mesmo, hão de tornar-se florescentes. Terão a vantagem de todos os seres pensantes: o mal será feito sem que ninguém seja o culpado. [...] O jornal pode permitir-se o procedimento mais atroz, ninguém se julga pessoalmente conspurcado com isso. [...] O jornalismo tem mil pontos de partida semelhantes. É uma grande catapulta posta em movimento por pequenos ódios. [...] E assim é o jornalismo por excelência: um tigre com duas garras, que tudo estraçalha, como se suas penas fossem inoculadas de raiva. [...] O velhaco arranjou através de suas relações uma posição maravilhosa junto do poder: é ao mesmo tempo o mandatário da imprensa e o embaixador dos ministros. Trafica com amores-próprios; estende mesmo esse comércio aos casos políticos; obtém dos jornais seu silêncio a respeito de tal ou qual empréstimo, ou de determinada concessão obtida sem concorrência nem publicidade, transações nas quais se dá uma parte aos agiotas da bancada liberal. [...] No século XVIII, quando o jornalismo estava ainda nos cueiros, a chantagem era feita por meio de panfletos cuja destruição era comprada pelos favoritos e pelos grandes senhores. O inventor da chantagem foi Aretino, um grande italiano, que taxava os reis como em nossos dias este ou aquele jornal taxa os atores. [5] Grifos nossos.

Como constata Rosângela Chaves: “É verdade que as traquinagens dos jornalistas narradas por Balzac parecem, aos olhos de hoje, quase pueris diante do imenso poderio que a indústria dos meios de comunicação ganhou em todo o mundo. Balzac descreve o jornalismo ainda na sua infância – as redações eram compostas por escritores ou aspirantes a sê-lo, estudantes e personagens da política que não encaravam o ofício como uma profissão. Tanto que, no romance, muitos dos que se dedicavam à atividade complementavam seus parcos ganhos revendendo livros e ingressos de teatro que recebiam de brinde (embora a penúria econômica da grande maioria dos profissionais de imprensa continue a mesma desde aquela época)”. [6] Realmente hoje o seu poder de manipulação e distorção da realidade é muito maior e tem um alcance impensável nas épocas de Lima Barreto e Balzac. Hoje os jornais impressos tiveram minimizado o seu papel, como meios de “poder” e “informação”, em proveito dos telejornais diários que, unidos à indústria do entretenimento, promovem os mais diversificados interesses, os quais, na esmagadora maioria dos casos, são antagônicos aos interesses da população, a qual é mantida na mais absoluta alienação.

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O linguista, sociólogo e filósofo Noam Chomsky, um dos mais atuantes e combativos intelectuais da atualidade, vem exercendo, há décadas, um papel crítico quanto a uma diversidade de temas, que afetam nossas vidas e sociedades contemporâneas. Dedicou-se a estudar a mídia e a expor o seu poder de manipulação da opinião pública nas democracias contemporâneas, a partir do que observou em seu país natal, os EUA, ao longo de vários anos. Ele nos indaga: “Considerando o papel que a mídia ocupa na política contemporânea, somos obrigados a perguntar: em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver e, sobretudo, em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática?” [7]

Chomsky nos coloca em face de duas concepções diferentes de democracia: a primeira seria aquela em que o povo dispõe de condições de participar de maneira significativa na condução de seus assuntos pessoais e na qual os canais de informação são acessíveis e livres. A segunda é aquela que considera que o povo deve ser impedido de conduzir seus assuntos pessoais e os canais de informação devem ser estreita e rigidamente controlados. Chomsky nos diz que a segunda concepção pode parecer uma concepção estranha de democracia, mas, em sua avaliação, é a predominante. Ou seja, os meios de comunicação seriam os porta-vozes dos interesses das elites econômicas e dos governos, em nível local e global. É a mídia que setores das esquerdas denominam “A grande mídia”, “mídia tradicional”, “mídia hegemônica”, “mídia corporativa” e o que o jornalista Paulo Henrique Amorim, com seu peculiar senso de humor, denominou de “PIG” (Partido da imprensa golpista). Sem a menor sombra de dúvida é o “jornalismo” praticado por esta mídia que Lima Barreto denuncia, com veemência, sob as vestes de Isaías Caminha.

Ainda, segundo Chomsky, a população tem de ser mantida em estado de apatia, de obediência e de passividade, para não gerar revolta quando seus interesses são vilipendiados. Assim, ao tratar os assuntos mais variados, em que existam determinados interesses, que devem ser mantidos inacessíveis aos olhos do povo, a imagem do mundo que é apresentada à população tem apenas uma pálida relação com a realidade. A verdade dos fatos encontra-se enterrada debaixo de montanhas e montanhas de mentiras. 

Em sua dissertação de mestrado a jornalista Letícia Sallorenzo diz que: “Não é exagero, portanto, afirmar que a imprensa brasileira toma partido. É tendenciosa, principalmente no que diz respeito às ideologias políticas. Em minha experiência de 25 anos como jornalista, percebo o uso e a escolha de determinadas construções com o objetivo de enfatizar este ou aquele viés e de criar nos leitores uma sensação de opinião muito bem fundamentada – que, na verdade, é baseada em manipulação ideológica”. [8]

Como notará Alberto Dines, um ícone do jornalismo brasileiro: “A nossa imprensa foi sempre o instrumento na disputa pelo poder entre os mandarins que circulavam nas suas vizinhanças. Jamais foi uma ferramenta a serviço da sociedade. Sua função crítica sempre esteve adaptada aos escopos de uma competição política que visava apenas a alternância de grupos e não de ideias no comando do processo decisório. [9]

Ignacio Ramonet, jornalista e sociólogo espanhol diz que: “Costumamos pensar que os meios de comunicação são essenciais à democracia, mas, atualmente, eles geram problemas ao próprio sistema democrático, pois não funcionam de maneira satisfatória para os cidadãos. Isso porque, por um lado, se põem a serviço dos interesses dos grupos que os controlam e, por outro, as transformações estruturais do jornalismo – tais como a chegada da internet e a aceleração geral da informação – fazem com que os meios sejam cada vez menos fiáveis ou menos úteis à cidadania”. [10] 

Talvez não seja leviano afirmar que durante toda sua história, seja no Brasil, seja em âmbito internacional, a grande mídia esteve ao lado e representou interesses contrários aos dos povos de seus respectivos países. No Brasil, os exemplos são fartos. Para não nos alongarmos em uma enumeração infindável de exemplos, que se estenderam durante anos, basta-nos focar o papel da grande mídia brasileira na recente supressão dos direitos trabalhistas e previdenciários dos trabalhadores brasileiros. Os lesados pelas manipulações, distorções e deturpações foram induzidos, pelos meios de comunicação da grande mídia – jornais impressos, rádios e telejornais - a defenderem tais “reformas” que tolheram, demasiadamente, seus próprios direitos sociais, os quais resultaram de conquistas históricas. 

No que diz respeito a “Reforma da Previdência” o “Repórter Brasil”, de 24 de abril de 2017, fez um detalhado e minucioso raio X de como a grande mídia tratou o assunto, analisando os três principais jornais impressos (Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo) e os dois maiores telejornais do país (Jornal Nacional e Jornal da Record). Dessa análise concluiu-se que o espaço para vozes contrárias a malfadada reforma foi ínfimo e raro. Ao contrário, o apoio à proposta do governo foi bastante amplo: indo de 62%, no caso da TV Record, a 91%, no da TV Globo

Os principais veículos de informação do país fizeram uma cobertura altamente positiva da proposta de “Reforma da Previdência” enviada pelo governo Michel Temer ao Congresso Nacional, deixando pouco ou nenhum espaço para opiniões divergentes, segundo levantamento realizado pela “Repórter Brasil”.

Afirma a matéria que: “Os veículos das organizações Globo foram os menos críticos: 91% do tempo dedicado ao tema pela TV Globo e 90% dos textos publicados no jornal O Globo foram alinhados à proposta do Palácio do Planalto. Nos impressos, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, 87% e 83% dos conteúdo fizeram uma cobertura positiva. O Jornal da Record foi o mais equilibrado, com 62% do tempo sendo favorável à Reforma”. [11]

Para chegar a essa conclusão, a “Repórter Brasil” analisou mais de 400 textos dos três jornais de maior projeção nacional – Folha, O Globo e Estadão – e 45 minutos de matérias dos dois principais telejornais – Jornal Nacional e Jornal da Record. O período avaliado abrange a cobertura das duas semanas anteriores e das duas posteriores à entrega do texto da proposta pelo Executivo ao Congresso: de 21 de novembro a 20 de dezembro de 2016. Conteúdos em que prevaleciam o detalhamento do projeto, sem apresentação de contrapontos, ou o apoio explícito em entrevistas foram avaliados como favoráveis e alinhados à proposta. Esse é o critério utilizado pelas maiores empresas do Brasil especializadas em análise de imagem e reputação. [12]

Como constata Dênis de Moraes, experiente estudioso dos meios de comunicação: “Os projetos mercadológicos e as ênfases editoriais podem variar, menos num posto-chave: operam, consensualmente, para reproduzir a ordem do consumo e conservar hegemonias constituídas”. [] Assim, o discurso que produzem é unívoco e representa os grandes interesses econômicos ou políticos dos mandarins do poder. Como Dênis nos informa, os meios de comunicação estão nas mãos de um “reduzido número de corporações que se incumbem de fabricar volume convulsivo de dados, sons e imagens, em busca de incessante lucratividade em escala global”. [13] 

Ainda segundo o autor, em seu livro “Mídia, Poder e Contrapoder”, publicado em parceria com os jornalistas espanhóis Ignacio Ramonet e Pascual Serrano: “Hoje, megaempresas, fundos de investimentos, magnatas das finanças e do petróleo e bancos como Santander, Bilbao Vizcaya, SCH e Deustche Bank têm participações acionárias e propriedades cruzadas em mídia”. [...] Com a expansão de seus negócios e o lastro financeiro assegurado por bancos e fundos de investimentos, conglomerados de mídia se convertem em atores econômicos de primeira linha”. [14] Evidentemente com os meios de comunicação e de entretenimento dominados por essa gente, irão espelhar e defender os interesses destes grupos e não os da população, com os quais nunca são coincidentes.

O Sistema mediático desempenha, entre outros, o papel de porta-voz dos interesses do Mercado, representados pela globalização e o neoliberalismo. Homogeneíza o discurso de propaganda dos valores e modos de vida consonantes com a economia neoliberal, neutralizando discursos críticos, reduzindo ou suprimindo espaços alternativos de pensamento e ação contestatórios. Como dirá Dênis de Moraes: “Trata-se, pois, de uma função ideológica que consiste em realizar a lógica do poder fazendo com que as divisões e as diferenças apareçam como simples diversidade das condições de vida de cada um, o que significa “escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto particular dando-lhe a aparência do universal”. [15]

Outro papel de relevo, desempenhado pelos grandes meios de comunicação, “é o de agentes econômicos. Todos figuram entre as trezentas maiores empresas não financeiras do mundo e dominam os ramos de informação e entretenimento, com participações cruzadas em negócios de telecomunicações, informática e audiovisual. Sem contar a enorme rentabilidade que obtêm com as transmissões espetacularizadas de eventos culturais, esportivos, jornalísticos e até religiosos”. [16]

Portanto, quando a grande mídia desempenha um papel de agente econômico, os interesses econômicos se sobrepõem aos demais e o interesse público vai para o espaço.

Pergunta Ignacio Ramonet: “Vocês acham que os meios de comunicação dominantes, que pertencem a grupos de alta relevância no mercado, serão críticos com a globalização e o neoliberalismo, sendo que eles são atores centrais nessas duas dinâmicas?”. A resposta é obviamente negativa. O jornalismo da mídia corporativa é o ideólogo do neoliberalismo. Em termos gerais, o que eles dizem sobre a perda de nossos direitos sociais? Que isso é muito bom para nós. Você perdeu seu trabalho, não dispõe mais de serviços públicos, cortaram sua pensão, complicam sua aposentadoria e fazem você trabalhar mais? Mas isso é muito bom! É excelente! Todos os meios de comunicação nos repetem isso constantemente.

Ignacio Ramonet nos diz que: “Quando afirmamos que as sociedades atuais vivem uma dinâmica globalizante ou neoliberal, na verdade, o que elas vivem ou parecem viver é uma dinâmica dupla. Não há um único poder: ele não é apenas financeiro, mas sim econômico-financeiro e midiático. Se esses poderes não existissem juntos, não funcionariam, pois não basta vencer, é preciso convencer. A vitória neoliberal não seria completa se o vencido não estivesse convicto, não estivesse feliz de ter sido vencido. Ele não deve nem mesmo perceber que foi vencido, deve pensar que está participando da vitória de seu adversário, não percebendo a si mesmo como vítima. No geral, a missão dos meios de comunicação é a de domesticar as sociedades – ou, em outras palavras, a de “levá-las pelo bom caminho” –, mas os cidadãos estão percebendo que as benesses do poder midiático não passam de dissimulação e, assim, aceitando-o cada vez menos”. [17]

Os meios de comunicação já foram vistos como uma solução para a democracia, funcionando como um contrapeso aos poderes constituídos, expondo suas mazelas, cobrando-lhes transparência e ações, mas hoje se apresentam como um problema. Promovem a dissimulação, a alienação, a distorção e a manipulação das informações ao saber dos interesses políticos e econômicos do momento. Além de ser o único poder que não admite nenhum tipo de controle, em nome de uma “liberdade de expressão”, que se constitui na verdade em liberdade para a defesa de interesses de poucos em detrimento dos interesses do conjunto da população.

Como nos faz ver criticamente Ignacio Ramonet: “Consequentemente, esses grupos de comunicação que tanto reivindicam a liberdade de imprensa e se apresentam como os defensores e baluartes da democracia não estão preocupados nem com a verdade, nem com a democracia, da mesma maneira que um fabricante de lava-roupas não está. Eles ficarão do lado dos bancos que despejam quem não paga a hipoteca; das empresas que fazem demissões para melhorar seus lucros; das corporações que destroem o planeta, desde que continuem contratando publicidade. Assim como defenderão os hospitais e as universidades privadas, que com certeza colocarão mais anúncios do que os serviços públicos”. [18]

E continua, com sua verve crítica, o jornalista espanhol Ignacio Ramonet: “É claro que esses meios de comunicação apoiarão todos os políticos que propuserem mais poder para o mercado e menos para os cidadãos. Os jornais, os canais de televisão e as rádios, com seus colunistas, seus editoriais, suas reportagens por encomenda e suas informações manipuladas, lançar-se-ão como hienas contra qualquer um que ousar atentar contra os privilégios do mercado, pois foram criados para defendê-lo. E o mais grave: chamarão isso de liberdade de imprensa”. [19]

Como atesta Ignacio Ramonet, por meio de aprofundados estudos sobre a mídia: “Desta forma, a mídia não exerce o direito à liberdade de expressão, mas o direito à censura, na medida em que decide o que nós, cidadãos, vamos conhecer e o que não. Em uma democracia de verdade, o cidadão não pode ficar nas mãos de empresas de comunicação privadas sem participação democrática, como acontece habitualmente. Ele deve ter assegurado o direito de informar e ser informado. Em síntese, no atual sistema de mercado não são os governos que aplicam a censura, são os meios de comunicação”. [20]

Se há um veículo de comunicação na imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal global. Há muito tempo o JN reduziu a prioridade pela notícia para enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da empresa, bem como o proselitismo aberto em favor das causas político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo. O Jornal Nacional em seus cinquenta anos, comemorados recentemente, foi o propagandeador das pautas mais nocivas ao interesse do povo brasileiro, mantendo-o num nível absurdo de alienação. Apoiou a ditadura militar, fez campanha contra as diretas-já, apoiou a candidatura de Collor de Mello, a danosa privataria tucana, o golpe contra Dilma Rousseff, o aniquilamento dos direitos sociais, através das “reformas” da Previdência e Trabalhista. Apoia a entreguista e destrutiva pauta econômica de Paulo Guedes, que atende aos interesses do neoliberalismo financeiro, com a privatização do que sobrou da pilhagem promovida, nos anos 90 do século passado, por Fernando Henrique Cardoso. Como é o telejornal mais visto pelos brasileiros, para muitos dos quais é a única fonte de informação, tem um substancial poder deletério, além de pautar os demais telejornais.  

Não podemos também olvidar o papel pernicioso das redes sociais, que se somou ao da grande mídia, no sentido de manipular, distorcer e deturpar, com uma força assustadoramente destrutiva, nos últimos anos. As mídias sociais passaram a ser intensamente usadas, principalmente pelas extremas direitas mundo à fora e no Brasil. Em nosso país, particularmente nas últimas eleições, com uma veemência e violência inauditas. Foram ainda mais fundo em sua perfídia, disseminando mentiras escabrosas e escatológicas, que foram recebidas como verdades absolutas por incautos e desenformados.

Os meios de comunicação privados são servis ao poder político e econômico e na maior parte das vezes antagônicos aos interesses públicos, apesar de serem uma concessão pública, conforme preceitua o artigo 233 da Constituição Federal. Não nos esqueçamos de que grande parte de sua receita provém de medidas governamentais: publicidade institucional, incentivos fiscais benéficos, subsídios, programas de ajuda, entre outros. Não obstante, eles não possuem sistemas de controle públicos, como os conselhos editoriais, os representantes da oposição ou de comissões parlamentares, os conselhos de cidadãos etc. Essa situação origina um duplo discurso dos donos da mídia privada: eles denunciam intervencionismo quando as decisões democráticas não são de seu gosto, mas exigem dinheiro e ajudas públicas quando enfrentam dificuldades econômicas. 

Diante deste quadro desolar de controle da grande mídia sobre a informação e sua difusão o que nos cabe fazer? Explorar as brechas e contradições dentro da mídia hegemônica e levar adiante projetos jornalísticos alternativos no plano da contra hegemonia, notadamente os que rejeitam a mercantilização da informação e valorizam o pensamento crítico e emancipador. A internet que pode ser utilizada como ferramenta de disseminação de mentiras, intrigas e ataques, também tem mostrado seu potencial de contrapoder informacional. 

Nos últimos anos vicejaram vários sites e canais no YouTube veiculando informação de qualidade, com contextualização e senso crítico, noticiando aqueles assuntos propositalmente silenciados na grande mídia. São exemplos de uma aguerrida mídia alternativa: TV 247, TVT, Jornal Brasil Atual, Carta Capital, Carta Maior, GGN, DCM, Revista Fórum, Nocaute, Conversa Afiada, Brasil de Fato, Justificando, A Terra é redonda, Meteoro, Portal do José, Plantão Brasil, Henry Bugalho, Jones Manoel, Rogério Anitablian, Tutaméia TV. Seu alcance, se comparado ao da mídia corporativa, ainda é pequeno, mas tem aumentado paulatinamente e despertado corações e mentes, retirando-os do fundo escuro da caverna para à luz da verdade crítica.

Como propugna Dênis de Moraes: “No lado oposto, as agências alternativas inserem-se entre os segmentos da sociedade civil que reclamam um sistema de comunicação pluralista, opondo-se à centralização das informações em torno de um número reduzido de corporações e dinastias familiares. Significa entender a comunicação como bem comum e direito humano, que não pode ser apropriado nem distorcido pelas ambições mercantis de grupos econômicos e pretensões particulares”. [21] Alvíssaras!

Carlos Eduardo Araújo – Mestre em Teoria do Direito (PUC - MG)

NOTAS:

[1] BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. Companhia das Letras, 2002.

[2] BARBOSA, Francisco Assis. A Vida de Lima Barreto. José Olympio, 6ª edição, 1981.

[3] BARRETO, Lima. Prosa Seleta. Nova Aguilar, 2001.

[4] CHAVES, Rosângela. O Jornalismo, aos olhos de Balzac. Ermira, 2.jul.2016.

[5] BALZAC, Honoré de. Ilusões Perdidas. A Comédia Humana, Vol. VII. Globo, 2ª edição, 1955.

[6] CHAVES, Rosângela. O Jornalismo, aos olhos de Balzac. Ermira, 2.jul.2016.

[7] CHOMSKY, Noam. Mídia: Propaganda Política e Manipulação. Martins Fontes, 2014.

[8] FREITAS, Letícia Sallorenzo de. Gramática e manipulação: análise cognitivo-funcional de manchetes de jornais durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2014. Dissertação (Mestrado em Letras). Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Brasília, 2018.

[9] DINES, Alberto. O papel do jornal e a profissão de jornalista. Atualização e pesquisa Luiz Antonio Magalhães. Summus, 9ª edição, 2009.

[10] ROMANET, Ignacio. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[11] Mídia Ignora Críticas à Reforma da Previdência. Repórter Brasil, 24 de abr. de 2017. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2017/04/midia-ignora-criticas-a-reforma-da-previdencia/

[12] Mídia Ignora Críticas à Reforma da Previdência. Repórter Brasil, 24 de abr. de 2017. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2017/04/midia-ignora-criticas-a-reforma-da-previdencia/

[13] MORAES, Dênis. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[14] MORAES, Dênis. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[15] MORAES, Dênis. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[16] MORAES, Dênis. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[17] ROMANET, Ignacio. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[18] ROMANET, Ignacio. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[19] ROMANET, Ignacio. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[20] ROMANET, Ignacio. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

[21] MORAES, Dênis. Mídia, Poder e Contrapoder. Boitempo Editorial, 2013.

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