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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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A indiferença que cerca quem está vivo, mas perdeu o lugar

Preconceito contra idosos apaga vidas e experiências, sustenta exclusões e impede que a longevidade seja celebrada como conquista coletiva

A indiferença que cerca quem está vivo, mas perdeu o lugar (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

No início dos anos 1990, Norberto Bobbio, então um jurista italiano de 80 anos, subiu lentamente ao palco da aula magna do curso de Direito em Palermo. Diante de 5 mil estudantes vindos de toda a Itália, ele abriu sua conferência com uma reflexão desconcertante: “Vocês devem ter notado que entrei devagar, talvez pensando o que esse velho tem a nos ensinar. Meu único medo era cair, pois, na minha idade, uma queda pode ser fatal. E confesso: meu coração acelera quando o telefone toca, temendo a notícia da morte de mais um amigo de juventude. Mas agradeço por estarem aqui. Se forem felizes, alcançarão minha idade, ou até mais. Do contrário, morrerão jovens, sem viver tudo que poderiam".

A plateia, em uníssono, ergueu-se em aplausos por longos minutos, tocada pela sabedoria de quem transformava a fragilidade em força. Recomendo que busquem O Tempo da Memória, coletânea de conferências de Bobbio prefaciada no Brasil por José Guilherme Merquior.

Essa história, esse convite à vida, é o que me move, aos 66 anos, a enfrentar o etarismo e celebrar a longevidade.

O etarismo, termo cunhado em 1969 por Robert Butler, é mais que um conceito; é uma violência que desvaloriza a experiência.

Em 24 de junho de 2025, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação de um banco do Amapá ao pagamento de R$ 100 mil por etarismo. A funcionária foi chamada de “velha” e humilhada publicamente.

O etarismo não fere só um; apaga muitos, reforçando a ideia de que a juventude é sinônimo de competência e a velhice, de obsolescência. A longevidade, por outro lado, é uma revolução silenciosa.

No Brasil, a expectativa de vida saltou de 52 anos em 1960 para 77 hoje, com 34 milhões de idosos, 15% da população, segundo o IBGE.

No Canadá, com média de 82 anos, 19% são idosos, amparados por saúde pública robusta.

A China, com 78 anos, enfrenta um envelhecimento acelerado — 14% acima dos 65 — que pressiona sua economia.

Nos Estados Unidos, com 79 anos, desigualdades limitam a saúde para 17% de idosos.

A França, com 83 anos, brilha com políticas inclusivas, mas tensiona sua previdência com 20% de idosos.

Esses números são mais que dados; são vidas prolongadas, nem sempre respeitadas. O etarismo se infiltra em esferas que moldam a existência. No mercado de trabalho, 4 milhões de idosos brasileiros trabalham na informalidade, preteridos por estereótipos de “falta de inovação”. Planos de saúde impõem custos exorbitantes, enquanto a mídia retrata idosos como frágeis, ignorando sua vitalidade.

Na educação, iniciativas como o vestibular para maiores de 60 da UnB são raras; idosos são desencorajados, vistos como “deslocados”. No lazer, a falta de acessibilidade rouba sua alegria.

A OMS aponta que 1 em 6 idosos sofre violência etária globalmente. Isso não é sensibilidade exagerada; é exclusão sistêmica que nega a sabedoria acumulada. Leis tentam combater essa sombra. No Brasil, o Estatuto da Pessoa Idosa (2003) pune discriminação com até um ano de prisão. O Canadá protege via Canadian Human Rights Act, com reforços provinciais. A China, com sua lei de 2012, garante direitos, mas falha na aplicação. Nos EUA, o Age Discrimination in Employment Act (1967) ampara trabalhadores acima de 40, mas deixa brechas. A França promove inclusão com seu Código do Trabalho, mas enfrenta desafios previdenciários.

Leis são passos, mas a mudança exige coragem cultural.

Bobbio é minha bússola. Após os 65, ele escreveu Direita e Esquerda (1994), aos 85, e lecionou até os 90, provando que a mente não envelhece.

Cícero, em De Senectute (44 a.C.), também desafiou o etarismo, vendo a velhice como tempo de sabedoria, não de declínio. Desmond Tutu e Margaret Chan moldaram o mundo após os 65.

David Attenborough, aos 98 anos, inspira o mundo com seus documentários, como Planeta Azul e Nosso Planeta, mobilizando milhões a combater a crise climática com sua voz incansável pela preservação ambiental.

Yayoi Kusama, aos 96, lota museus; Fernanda Montenegro, aos 95, brilha no cinema; Warren Buffett, aos 95, lidera fortunas.

Eles mostram: a idade não limita, o preconceito sim.

A idade não enfraquece — revela.

O caso da funcionária humilhada expõe uma estrutura que descarta quem já entregou tanto. Desvalorizar a experiência é sabotar o futuro. O etarismo é um mecanismo de exclusão que se disfarça de eficiência.

Não importa a idade, viver com lucidez e propósito é resistência. Nada é mais alarmante que a indiferença diante de quem ainda está vivo, mas já não é visto.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.