A Indústria da Psique Instantânea: A Era dos Diagnósticos Fast-Food e o Colapso Ético dos “Especialistas de Telas”
O palco deixou de ser o salão aristocrático ou o gabinete iluminista. O palco agora é permanente, global e alimentado por algoritmos
Há algo profundamente sintomático na proliferação de psicólogos, psicanalistas e coaches que, embalados pela lógica do entretenimento algorítmico, transformaram a intimidade humana em palco e a saúde mental em produto de prateleira. É como se estivéssemos vivendo uma reedição distorcida da velha charlatanice de feiras medievais, agora turbinada por ring lights, microfones de lapela e a fome insaciável por visualizações. A diferença é que, no passado, os vendedores de elixires milagrosos carregavam frascos coloridos; hoje, carregam discursos fatalmente simplificados — versões contemporâneas de receitas de bolo para curar angústias que jamais couberam em receitas.
E o fenômeno não é isolado: é histórico.
Simões Bacamartes
Antes mesmo de aprofundarmos o debate contemporâneo, é impossível ignorar que esse movimento classificatório, essa obsessão em rotular e enquadrar comportamentos humanos, já havia sido brilhantemente satirizado pela literatura brasileira: Simão Bacamarte, personagem central de O Alienista, de Machado de Assis.
Bacamarte, investido da missão de fundar a Casa Verde, inicia sua investigação sobre a loucura com um objetivo nobre, mas rapidamente se perde em uma verdadeira compulsão por catalogar desvios. Em nome de uma razão que se crê absoluta, passa a enxergar sintomas em todas as condutas humanas — até que a cidade inteira se torna, aos seus olhos, desequilibrada e interna todo mundo em seu nosocômio psiquiátrico – do Gari ao Prefeito e o Delegado -, para, depois desinterná-los e ´se autointernar reconhecendo que o único inadequado e de comportamento desviante era ele próprio.
A crença de que existe um padrão ideal de sanidade transforma-se, inevitavelmente, em delírio classificatório.
Essa lógica — a da norma ideal contra a qual todo comportamento deve ser medido — é precisamente a que os “especialistas de telas” replicam hoje.
Nos vídeos curtos, nas lives performáticas, nas prescrições genéricas, assume-se o papel de Bacamarte contemporâneo: definir o que é comportamento saudável, apontar desvios, corrigir falhas, rotular afetos, interpretar relações. Há sempre uma suposta chave universal do que é certo ou errado, como se a vida subjetiva fosse uma equação dedutível.
A Casa Verde, ontem literária, tornou-se hoje digital: um manicômio simbólico onde todos somos candidatos a pacientes — e onde a normalidade é decidida por quem ocupa a câmera.
Da Psicanálise ao Coaching Pop: a degradação do discurso clínico
A psicanálise, desde Freud, nasceu como um esforço de escuta profunda, uma cartografia fina do inconsciente que pressupõe singularidade, paciência e método. A psicologia, em suas diversas escolas, seguiu o mesmo ideal: investigar o humano na sua espessura histórica, familiar, social e simbólica. Já o coaching, em seu sentido legítimo, surgiu como metodologia de desenvolvimento de potencial, não como oráculo emocional.
Mas a hiperexposição contemporânea operou uma perversão: práticas sérias foram transmutadas em espetáculo. A partir dos anos 2000, com o avanço da Web 2.0, a saúde mental converteu-se em nicho mercadológico; e após a pandemia, em verdadeira febre digital. Profissionais que deveriam defender a singularidade psíquica passaram a operar como influenciadores — e influenciadores, não raro, mais interessados em “engajamento” do que em ética ou técnica.
É a neurose da performance travestida de cuidado.
Os diagnósticos da moda: narcisismo, procrastinação, autosabotagem e outras comodidades conceituais
O que antes exigia entrevistas, escutas, análises, contradições, uma trama transferencial e contratransferencial complexa, agora é proclamado em vídeos de 30 segundos. Virou tendência: — “Se seu parceiro faz isso, ele é narcisista.”— “Se seu filho age assim, está te manipulando.”— “Se você não realiza seus sonhos, está se autossabotando.” — “Se você sofre demais, é porque está no papel de vítima.”
Ao lado desses diagnósticos simplificados, soma-se o estereótipo do “vitimismo”, categoria que se tornou moeda corrente no vocabulário dos especialistas de telas. Basta que alguém manifeste sofrimento legítimo, apresente vulnerabilidades emocionais ou enfrente adversidades complexas para imediatamente ser acusado de “se vitimizar”, como se todo sofrimento humano fosse estratégia, manipulação ou encenação — nunca realidade, nunca história, nunca trauma, nunca contexto.
Trata-se de mais uma etiqueta genérica, vazia de método, porém carregada de violência simbólica: ela silencia, culpabiliza, deslegitima e expulsa a dor do campo da escuta, reduzindo experiências profundas a um rótulo depreciativo que justifica o abandono.
O estereótipo do “vitimismo” funciona como uma espécie de antipatia preventiva: impede a empatia, inibe a compreensão e autoriza o julgamento apressado. Em vez de perguntar “o que aconteceu?”, pergunta-se: “qual é o seu ganho secundário?”. A consequência é devastadora: indivíduos reais, em sofrimento real, são empurrados para a solidão emocional, convencidos de que expressar dor é prova de fraqueza moral.
Assim, o “vitimismo” entra na mesma prateleira conceitual paliativa de “narcisismo”, “manipulação”, “preguiça” e “autossabotagem”, compondo mais uma peça na engrenagem de diagnósticos fast-food que patologiza tudo o que escapa à narrativa motivacional da performance e da superação.
Esses profissionais não reconhecem que o diagnóstico, quando legítimo, é sempre singular. Não se trata de um encaixe, mas de uma construção. Substituem o método clínico por manuais genéricos de autoajuda, atribuindo culpas, produzindo julgamentos e estimulando cisões — tudo sem jamais ouvir os protagonistas reais dos conflitos que descrevem. É a patologização industrial do cotidiano humano.
Chamam isso de “psicoeducação”, mas, na prática, trata-se de entretenimento travestido de ciência. Nada poderia estar mais distante da ética profissional.
A violência da generalização: quando a tela vira tribunal
Nas redes sociais, cada gesto humano vira evidência. Cada comportamento vira sintoma. Cada afeto vira patologia.
E assim, milhões de pessoas passam a interpretar seu cônjuge, seus pais, seus filhos e colegas como peças de um tabuleiro psicológico imaginário. Uma mãe severa vira “narcisista”. Um adolescente reservado vira “manipulador”. Um parceiro cansado vira “tóxico”. A complexidade humana é amputada em prol de narrativas que geram curtidas e compartilhamentos.
É uma nova forma de violência simbólica: a psicologização massiva do cotidiano.
Não há história, não há contexto, não há escuta. Há apenas o julgamento sumário — e o julgamento veste jaleco.
A Biopolítica Foucaultiana e o Governo das Condutas
O fenômeno descrito acima não é apenas uma distorção técnica ou uma falha ética: ele se insere de forma precisa no que Michel Foucault denominou biopolítica — uma forma de poder que não controla pela força, mas pela produção de normas.
A partir do século XVIII, diz Foucault, as sociedades modernas passaram a governar não apenas corpos, mas condutas: regular comportamentos, instaurar padrões, definir o normal e o patológico. É exatamente esse dispositivo que os influenciadores digitais da saúde mental acionam quando se apresentam como autoridades capazes de declarar o que é maturidade emocional, relacionamento saudável, comunicação adequada, limites aceitáveis, vínculos nutritivos.
A biopolítica age criando um modelo invisível de sujeito ideal, ao qual todos devem aspirar. Os especialistas de telas fazem isso o tempo todo: – procuram inadequações em qualquer comportamento; – transformam diferenças humanas em desvios; – tratam singularidades como falhas; – determinam formas “certas” de reagir, sentir, amar;
– exercem, enfim, uma governamentalidade afetiva difusa.
A busca por apontar inadequações — não por escutar — não é acidental: é estrutural.
É a própria lógica da normalização biopolítica, que precisa constantemente produzir categorias de desvio para justificar sua existência.
Tudo isso é seguido por um imperativo moral: “Você deve se comportar assim.”
No século XXI, o panóptico não vigia por torres, mas por telas.
Cada pessoa passa a monitorar os próprios afetos, palavras e reações, temendo ser classificada como “tóxica”, “manipuladora”, “imatura”, “narcisista”, “disfuncional”. Esse é o triunfo do panoptismo emocional: a vigilância é internalizada, e o sujeito se torna agente de sua própria correção, sob orientação daqueles que acreditam possuir — e vender — a chave universal da normalidade.
A patologização que destrói lares
O efeito colateral desse fenômeno é devastador. Várias famílias se esgarçam por conselhos genéricos; relacionamentos terminam por diagnósticos inventados; crianças são rotuladas como vilãs emocionais de seus próprios pais.
E, talvez o mais grave: indivíduos vulneráveis, em sofrimento, passam a acreditar que carregam falhas irreparáveis — e não processos humanos normais que poderiam ser elaborados com acompanhamento sério.
Quando um influenciador que ostenta credenciais diz que “se seu parceiro não te responde rápido, ele é narcisista”, ele não está oferecendo informação. Está oferecendo munição. E munição emocional tende a explodir no colo de quem já está fragilizado.
É irresponsabilidade disfarçada de cuidado.
O risco real: depressões induzidas, rupturas irreversíveis, ideação suicida
A panaceia digital produz vítimas reais.
O discurso reducionista pode catalisar crises depressivas; pode alimentar delírios interpretativos; pode corroer a autoestima de quem se identifica com “sinais” artificiais que jamais foram avaliados clinicamente. Há relatos crescentes de pessoas que, após consumirem esse tipo de conteúdo, romperam relações saudáveis, passaram a desconfiar de familiares ou entraram em espirais ansiosas.
Em casos extremos — e não tão raros —, discursos digitalizados de saúde mental se tornam gatilhos para decisões irreversíveis, inclusive suicídio.
A precarização da clínica vira tragédia social.
O triunfo da neurose de performance nas mãos dos supostos “especialistas”
Esses profissionais performam uma vida perfeita: consultório instagramável, linguagem pasteurizada, fórmulas salvadoras e um discurso monótono sobre “viver sua melhor versão”. É irônico: denunciam a “autossabotagem” dos outros enquanto se deixam sabotar pela própria busca neurótica por curtidas. Pregam “autenticidade” enquanto moldam suas identidades conforme tendências de mercado. E, no fim, constroem um império sobre a precariedade emocional do público — um império erguido sobre areia movediça ética.
A História como advertência: do frenesi mesmeriano às redes sociais
A popularização de discursos pseudocientíficos não é inédita.
No século XVIII, Mesmer encantou multidões com seu “magnetismo animal”, hipnotizando a burguesia parisiense com promessas de cura universal. Foi preciso que Benjamin Franklin e uma comissão científica desmontassem o espetáculo para conter o dano social.
No século XIX, proliferaram os frenologistas, que afirmavam ler a personalidade através de protuberâncias cranianas — método que serviu de sustentação para racismo pseudoerudito.
Hoje, porém, é pior.
O palco deixou de ser o salão aristocrático ou o gabinete iluminista. O palco agora é permanente, global e alimentado por algoritmos. O alcance é incomparável; o dano também.
Somos a primeira sociedade em que a saúde mental virou entretenimento massivo.
A clínica verdadeira não cabe em stories
A verdadeira psicologia e a verdadeira psicanálise são lentas, difíceis, contraditórias, singulares.
O sofrimento humano não cabe em tópicos. A subjetividade não cabe em diagnósticos prêt-à-porter. E a ética nunca coube em vídeos de 20 segundos.
A clínica é feita de presença, silêncio, elaboração, história. Nenhum algoritmo é capaz de substituí-la.
Toda tentativa de “didatizá-la” em formatos de consumo rápido gera distorção — e, no limite, violência.
O que está em jogo é a dignidade psíquica da sociedade
O fenômeno dos “especialistas de tela” é mais do que uma moda: é um sintoma da degradação cultural da escuta e da transformação da angústia humana em mercadoria.
Não se trata de demonizar redes sociais. Trata-se de denunciar um sistema que recompensa a irresponsabilidade, a simplificação e a transformação da dor alheia em conteúdo vendável.
Enquanto a promessa de cura instantânea continuar produzindo lucro, continuarão a surgir “especialistas” dispostos a vender diagnósticos, culpas e manuais de condenação emocional.
E cada vídeo viralizado custará caro: famílias dissolvidas, subjetividades feridas, vidas interrompidas.
A saúde mental exige respeito. E respeito não se vende em cápsulas digitais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

