A Inteligência de Estado no Brasil e a Era Multipolar: cinco eixos estratégicos – Civilianização e Projeto de Nação (Eixo I)
Sem projeto de nação e sob elites desarticuladas, a Inteligência brasileira permanece vulnerável e incapaz de acompanhar a nova ordem multipolar
Nos processos geopolíticos e geoeconômicos em curso, são raras e rasas as referências aos possíveis e prováveis impactos dessas potentes mudanças nas agências de Inteligência estatais civis. Esse fato não deixa de nos surpreender, pois tais organismos, como apparatus das elites de Estado, são, necessariamente, peças estratégicas nas atividades de espionagem e contraespionagem sobre o movimento de governos, empresas privadas e estatais, entidades não governamentais, grupos de influência/pressão político-ideológica e serviços secretos.
No campo do Sul Global, dos Brics e da Organização de Cooperação de Xangai, onde perfilam como líderes desses processos países com estruturas de Inteligência institucionalmente robustas e sistemicamente imperativas, tais órgãos são/estão desafiados a se reciclarem e, em muitos casos, a se redesenharem em termos doutrinários, de seus métodos de produção de conhecimento em Inteligência, de suas concepções relativas às vertentes de análise e operacional, de seus mecanismos de controle e fiscalização horizontal/vertical etc.
Não se trata de “reinventar a roda”, esse desafio. Com efeito, por princípio doutrinário, sabemos todos que é condição de sua sobrevivência e qualidade de seus serviços o constante adaptar-se às circunstâncias históricas e às exigências impostas pelos chefes de Estado ou de governo. Assim sendo, explica-se o processo irrecorrível que observamos na Rússia e na China, países que estão a reforçar e a adaptar suas expertises e seus agentes para o aqui e agora da mudança dinâmica nos embates políticos, ideológicos, econômicos e bélicos, tanto quanto seus serviços devem se projetar no futuro imediato da nova ordem multipolar.
Onde se situa ou situaria a Inteligência de Estado brasileira nessa dinâmica disruptiva de governos, elites e serviços secretos? Para evitar ser extenso, abordo aqui algumas questões que julgo estratégicas para formular um pensamento crítico básico sobre o estado atual da Inteligência em face dos referidos desafios do mundo multipolar em formação. Embora o foco da abordagem seja a Inteligência brasileira, é possível deduzir/derivar as análises para outros serviços secretos, menos ou mais envolvidos com os referidos desafios.
Desde já, defendemos duas premissas, a saber: a) não há Inteligência de Estado sem uma Teoria da Inteligência que a critique na forma e no conteúdo, sem concessões pseudoacadêmicas oportunistas e textos para ecoar a “voz do dono” (em outras palavras, não haverá, nos argumentos que se seguem, mistificação, falácia ou diversionismo na formulação dos eixos estratégicos); e b) todas as questões levantadas implicam a necessidade de um projeto de nação formulado pela elite política e governamental. Se acaso alguém quiser discutir essas abordagens, na última linha disponibilizamos nosso e-mail para contato.
Vamos dividir o trabalho em cinco eixos. Neste primeiro artigo, vamos tratar do eixo Civilianização e Projeto de Nação.
Civilianização e Projeto de Nação
A rigor, civilianizar deve ser interpretado como um processo contra-hegemônico ou hegemônico, a depender das condições históricas dadas numa agenda de mudança política. Aliás, alguns conflitos intra/interelites civis e militares que logram “emparedar” o serviço secreto e seus agentes numa espécie de zona cinza – a saber, entre os paradigmas Informativo e Preditivo – podem, simultaneamente, implicar processos contra-hegemônicos e hegemônicos. Advêm daí, em geral, os conflitos ideológicos e políticos em torno da luta pelo controle do apparatus.
O que deverá importar às elites dirigentes nessa dialética, sobretudo, é considerar duas coisas na agenda da Civilianização: a) qual deve ser a função institucional do serviço secreto, para além do clássico papel de prover Inteligência e Contrainteligência (o que implica conhecer a dimensão do seu caráter estratégico em face do seu ethos político); e b) qual deve ser, em extensão e profundidade, o seu poder de facto e de jure (o que implica saber seu desenho institucional em face de todos os demais órgãos federais que, direta e indiretamente, podem demandá-lo por dentro ou por fora do Sisbin).
No primeiro caso, a pergunta diz respeito ao papel estratégico de uma agência no quadro de um projeto de nação. Em outras palavras, aqui se impõe saber/compreender o que a elite política quer da atividade de Inteligência para além do tempo da gestão governamental em si. Isso implica considerar, por exemplo, que não basta à elite reconhecer que a atividade é de Estado, mas também saber como, quando, onde e por que essa Inteligência incorpora e reflete esse projeto político e social formulado pela mesma.
A mais grave vulnerabilidade institucional de um serviço secreto ocorre na referida zona cinzenta. Se a elite dirigente não engendra um projeto estratégico de nação, não há como o serviço secreto se estruturar e operar mediante eixos ou linhas-mestras institucionais sustentáveis, nem internamente à sua direção, nem entre as diversas gestões governamentais. A Abin é um exemplo óbvio desse desenho vulnerável, efeito da anárquica e disfuncional política brasileira já a partir da radicalização/confronto político-ideológico, mediante os quais se infiltra o perigoso vetor “fé” supostamente religiosa como galvanizador/mobilizador de massas populares e de faixas da classe média.
Assim consideramos pelo fato de o serviço secreto brasileiro, desde a posse de José Sarney, em 1985, até agora, não ter se civilianizado, a despeito dos cinco concursos públicos, das mudanças geracionais, dos diversos diretores-gerais e de sete presidentes da República. São quase quarenta anos em eterna contramarcha. Esse quadro anárquico e disfuncional da esfera política, para além de reforçar a vulnerabilidade da agência, opera como vetor de atração e expansão, em seu interior, de mentalidades ideologicamente radicalizadas, mais ou menos contagiadas por lideranças políticas e suas agendas de poder em geral personalistas e institucionalmente precárias.
Como vemos, civilianizar a Abin (ou a Inteligência, como tal) não significa apenas criar e aplicar uma agenda que substitua antivalores (militares ou policiais, em chave autoritária). Em perspectiva política e ideológica, os civis também podem incorporar antivalores autoritários. Não por acaso, sob os paradigmas Policial e Repressivo, observa-se o “espião civil” travestido em polícia política, muitas vezes mais radical do que tipos fardados. E o fato mesmo de, entre os paradigmas Informativo e Preditivo, permanecerem, no serviço secreto, aberta e/ou veladamente, os legados autoritários/policiais, é um indicador da ausência/falha de uma agenda civilianizadora entre os quadros civis, em termos de doutrina e identidade institucional.
Ora, se uma instituição de Estado pode refletir o que é a elite política de um país em seus jogos de poder menos ou mais torpes, corruptos e sórdidos, mais ainda um serviço secreto a refletirá, direta e indiretamente, sobretudo se encarna uma institucionalidade vulnerável. Do mesmo modo, se as elites políticas não formulam um projeto de nação – qualquer que seja a diretriz ideológica hegemônica numa quadra histórica determinada –, não haverá como atribuir um papel estratégico ao órgão de Inteligência. Esse é o caso da Abin, cujo “papel estratégico” é apenas nominal, segundo a letra da lei que a criou. Vale perguntar, aqui, se tais elites, ao longo da história política do país, assim fizeram (por incapacidade de criar um projeto dessa natureza) ou assim quiseram (pelo fato de um país sem norte social, político e ideológico ser mais fácil de espoliar e controlar, geração após geração).
No segundo caso, a questão trata da Civilianização à luz do velho desafio de projetar a atividade por meio de sistemas de Inteligência. De fato, desenhar instituições para operar o poder de facto e de jure entre “parceiros” em rede sistêmica é difícil quando o ente tutelar não goza de legitimidade e confiança. Aqui, desenho institucional e grau de Civilianização se condicionam mutuamente, e daí podemos apreender os termos das clivagens disfuncionais a envolver os quadros orgânicos da Abin em face dos servidores de outros órgãos, bem como a natural estranheza/desconfiança destes em relação à agência e seus oficiais.
É iniludível que a Civilianização requer, como pressuposto para se instituir (no ambiente do desenho), a refundação da Abin vis-à-vis a reforma orgânica da atividade de Inteligência. Ou seja, a Civilianização está, desde sempre, condicionada por um movimento objetivo da elite política no Congresso e na Presidência. Não é/foi por acaso, pois, que a Procuradoria-Geral da República (PGR) propôs, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 84, protocolada em 13/12/2023, arguindo como requerente a “ausência de atuação normativa do Congresso Nacional ‘na regulação do uso, por órgãos e agentes públicos, de programas de intrusão virtual remota e de ferramentas de monitoramento secreto e invasivo de aparelhos digitais de comunicação pessoal’”.
Nessa ADO, a PGR sustenta que, conforme despacho de 01/02/2024, do ministro Cristiano Zanin, “em virtude da suposta omissão parcial na regulação dessas ferramentas, o objetivo da presente ação seria ‘dar efetividade aos mandamentos constitucionais de proteção estatal da intimidade e da vida privada, e de inviolabilidade do segredo das comunicações pessoais e de dados, estatuídos no art. 5º, X e XII, da Constituição Federal.’”
A referida ação da PGR demonstra, relativamente à atividade de Inteligência, o grau de anomia comum à dimensão do poder de jure da Abin: não nos surpreende o desleixo do Congresso em normatizar o grave problema do uso de softwares invasivos (os “spywares”), dos IMSI Catchers (sigla em inglês de International Mobile Subscriber Identity, que propiciam a captura, a partir de um celular, de dados de identificação e informações de outro celular no entorno de sua cobertura); do alcance do uso das ferramentas tipo GPS (para geolocalização); da quarentena dos comissionados internos ou externos (seja de “entrada” ou “saída”); do controle judicial ex ante; da análise rigorosa da responsividade da agência, mediante a CCAI etc. As elites do Congresso e do Executivo são as causas dessa anomia, na medida mesma em que não pretendem, em face do serviço secreto, fortalecê-lo como um poder de facto.
É importante apontar, em face dessa simbiose, que a Civilianização não se efetivará sem que essas elites criem e articulem uma agência de natureza e fins estratégicos na Defesa e Segurança do Estado e da sociedade. Em outras palavras, civilianizar significará, necessariamente, um processo de ruptura, em sentido intra/interinstitucional, a ser operado, simultaneamente, no plano político e num eixo legal – eixos ou norte de qualquer desenho de um órgão/atividade estratégicos.
Ocorre que (e temos aqui o nó górdio dessa dialética) esse movimento político supõe que a elite, no Parlamento e no Executivo, queira formular um projeto estratégico de nação onde um serviço secreto possa constituir, potencialmente, uma “sentinela indormida” atenta à corrupção pública e privada, aos golpismos de radicalizados ideológicos da direita e extrema-direita, aos ataques ao Estado Democrático de Direito e às suas principais instituições, à infiltração de grupos antinacionais e agentes estrangeiros para solapar as instituições e semear ideias de secessão no país etc.
Não há no Brasil uma elite preocupada em construir essa nação.
Diante das imensas batalhas geopolíticas e geoeconômicas que os processos da era multipolar já impõem aos países, a ausência de um projeto de nação que possa balizar estrategicamente a atividade de Inteligência vai implicar, necessariamente, serviços secretos vulneráveis, por disfuncionais e engessados. Conscientes dessa fraqueza, não há dúvida de que os adversários/competidores estratégicos do Brasil buscarão bloquear e até neutralizar os interesses nacionais nas disputas regionais e internacionais.
Os Estados Unidos são, desde já, a ponta de lança desses ataques. Se sempre fomos seu “quintal” de troços e destroços autoritários, periga transformarmo-nos numa “senzala” em sua cruzada neoimperialista. A União Europeia já está sob seu absoluto controle político, militar e econômico. Na América do Sul, o México, a Argentina, o Chile, a Venezuela e o Brasil são seus alvos prioritários como pretensos butins naturais das batalhas da era multipolar.
Se a velha CIA jamais “dormiu em serviço” quando, nos períodos bipolar (Guerra Fria, 1945 a 1989) e unipolar (Pós-Guerra Fria, 1989 a 2014), os Estados Unidos reinaram absolutos no continente sul-americano, imaginem agora o quanto estará desperta para vigiar e punir quem se atrever a contestar o antigo hegemon decadente.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
