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Camilo Irineu Quartarollo

Autor de nove livros, químico, professor de química, com formação parcial em teologia e filosofia.

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A lei da Clementina

Ainda prevalece a escala cansativa de seis dias trabalhados por um de folga, ou seja, a famigerada escala 6x1

Mobilização contra a escala 6x1 (Foto: Letycia Bond/Ag. Brasil)

O lazer é direito universal, conforme declaração da ONU e pela Constituição Brasileira.  É um direito humano!

O lazer é mais que a simples recreação ou tempo livre, carece de fantasia, inteligência, inventividade. No período em que o tráfico escravagista optava por crianças para reproduzir mão de obra no Brasil, as mãezinhas de navio faziam as abayomis de pano. Retiravam do barrado das próprias saias, moldavam com nós simples as bonequinhas rústicas. Os descendentes de imigrantes como eu temos de Brasil em torno de cento e trinta anos, mas antes de nós aportaram aqui os afrodescendentes trazidos há quatrocentos anos. Domesticaram a terra brava, adocicaram a vida com quitutes, amansaram a língua pátria e se descobriram mesmo na dura realidade servil. Ensinaram-nos que tudo pode ser superado.

A elite dominante e escravocrata atentou contra esse direito aos afrodescendentes. Caracterizavam o tempo livre deles como vadiagem. O “coroné” branco não tinha fôlego para festar, nem o corpo belo e luzidio dos negros e negras numa dança alegre e sem pudores europeus, num carnaval. Pero Vaz de Caminha relatou que os povos originários não escondiam as suas vergonhas, mas a roupa é para se esconder? Principalmente em país quente, quanto mais roupas, menos autêntico! “O corpo não é mais que as vestes?!”, pergunta retórica de Jesus no Sermão da Montanha. O corpo fala, respira, expressa-se. A dança, expressão genuinamente humana, mas também voz do sagrado como a de Davi ou a dos orixás – sem demérito a credos religiosos, ir à Igreja ou ao Terreiro pode ser caracterizado como lazer social. 

O lazer ainda é confundido, de má-fé, como vadiagem, vagabundice e outros desqualificativos. Se pudessem aboliriam até mesmo o Carnaval. Embora a lei da vadiagem seja do século XX, consolida as práticas repressivas pós-abolição. Era um meio de manter o povo trabalhador na favela, longe dos centros urbanos e fora dos bancos dos ônibus.

A Constituição brasileira de 1988 reconhece o lazer como um direito fundamental, incluído no artigo 6º, caput, artigo 7º, IV, artigo 217, § 3º, e artigo 227, e que o poder público deve incentivar o lazer.

É justo lembrar a voz rascante, forte e determinada de Clementina de Jesus: Não vadeia, Clementina! Vô vadiá, vô vadiá... Esse canto debochado dessa diva afro é um grito de guerra, pelos seus valores espirituais, na epifania do mistério negro que flui das veias do Brasil.

Ainda prevalece a escala cansativa de seis dias trabalhados por um de folga, ou seja, a famigerada escala 6x1. As leis trabalhistas em países mais justos diminuíram a jornada de trabalho e, para surpresa ou não, a produtividade até aumentou. No tempo livre as pessoas podem acompanhar a agenda social, ir ao teatro, ao futebol, dançar, orar na igreja e muitas outras coisas. Entretanto, os patrões de mentalidade tacanha querem se fazer de desentendidos, para não aprovar a escala que possibilita esse direito de lazer!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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