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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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A longa e sinuosa estrada multipolar

A 'ordem baseada em regras' do Ocidente invoca a autoridade do governante. Rússia-China dizem que é hora de retornarmos a uma ordem baseada no direito

Putin e Xi Jinping (Foto: Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin)
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Por Pepe Escobar, para o The Saker

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Vivemos mesmo em tempos extraordinários.

No dia do 100º aniversário do Partido Comunista Chinês (PCC), o Presidente Xi Jinping, na Praça de Tiananmen, em meio a pompa e circunstância, proferiu uma dura mensagem geopolítica:

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O povo chinês jamais permitirá que forças estrangeiras o intimidem, oprimam ou subjuguem. Qualquer um que tentar esse caminho, se verá em curso de colisão com um grande muro de aço forjado por mais de 1,4 bilhão de chineses.

Escrevi uma versão concisa do milagre chinês moderno - que nada tem a ver com intervenção divina, mas sim com "a busca da verdade a partir de fatos" (direitos autorais de Deng Xiaoping), inspirada em uma sólida tradição cultural e histórica.

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O "grande muro de aço" evocado por Xi representa agora uma dinâmica "sociedade moderadamente próspera" - objetivo alcançado pelo PCC às vésperas de seu centenário. Tirar 800 milhões de pessoas da pobreza é um feito único na história - em todos os sentidos.

Como em tudo o que se refere à China, o passado informa o futuro. Trata-se de xiaokang - traduzido frouxamente como "sociedade moderadamente próspera".

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O conceito surgiu pela primeira vez há nada menos que 2.500 anos, no clássico Shijing ("O Livro da Poesia"). O Pequeno Timoneiro Deng, como seu olho de águia para a história, o trouxe de volta em 1979, logo ao início da "abertura" das reformas econômicas.

Compare-se agora esse divisor de águas celebrado em Tiananmen - que será interpretado por todo o Sul Global como prova do sucesso do modelo chinês de desenvolvimento econômico - com vídeos que circulam na rede, do Talibã conduzindo tanques T-55 capturados por aldeias miseráveis do Norte do Afeganistão.

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A história se repetindo: isso é algo que vi com meus próprios olhos há mais de vinte anos.

O Talibã hoje controla quase a mesma extensão do território afegão que controlava imediatamente antes do 11 de setembro. Ele controla a fronteira com o Tajiquistão e está prestes a dominar a fronteira com o Uzbequistão.

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Há exatos vinte anos, eu estava mergulhado em uma outra viagem épica através de Karachi, Peshwar, as áreas tribais do Paquistão e, por fim, do vale de Panjshir, onde entrevistei o Comandante Massoud - que me disse que o Talibã, àquela época, controlava 85% do Afeganistão.

Três semanas depois, Massoud era assassinado por um comando ligado à al-Qaeda, seus integrantes disfarçados de "jornalistas" - dois dias antes do 11 de setembro. O império - no auge do momento unipolar - lançou-se furiosamente às Guerras Eternas, enquanto a China - e também a Rússia - aprofundava sua consolidação em termos geopolíticos e geoeconômicos.

Estamos agora vivendo as consequências dessas estratégias opostas.

A parceria estratégica

O Presidente Putin acaba de passar três horas e cinquenta minutos respondendo ao vivo perguntas - que não passaram por seleção prévia - de cidadãos russos, durante sua sessão anual de Linha Direta. A ideia de que "líderes" ocidentais do tipo Biden, BoJo, Merkel e Macron teriam capacidade para lidar com algo remotamente semelhante é cômica.

O ponto principal: Putin ressaltou que as elites dos Estados Unidos entendem que o mundo está mudando, mas ainda pretendem preservar sua posição dominante. Ele usou como demonstração a recente pirueta britânica na Crimeia, que parece saída diretamente de um filme de Monty Phyton, uma "provocação complexa" que de fato foi anglo-americana: uma aeronave da OTAN havia anteriormente conduzido um voo de reconhecimento. Putin: "Ficou óbvio que o destroyer entrou [em águas crimeias] com objetivos militares".

No início desta semana, Putin e Xi se falaram por videoconferência. Entre os principais tópicos estava um da maior importância: a extensão do Tratado China-Rússia de Boa-Vizinhança e Cooperação Amistosa, originalmente assinado há vinte anos.

Uma cláusula importante: "Sempre que surgir uma situação na qual uma das partes contratantes se perceba... confrontada com a ameaça de agressão, as partes contratantes deverão, de imediato, entrar em contato e proceder a consultas visando a eliminar essas ameaças". 

Esse tratado está no cerne daquilo que agora é descrito - por Moscou e Pequim - como uma "parceria estratégica ampla de coordenação para uma nova era". A amplitude dessa definição faz total sentido, uma vez que se trata de uma parceria complexa de múltiplos níveis, não de uma "aliança", concebida como contrapeso e alternativa viável à hegemonia e ao unilateralismo.

Um exemplo claro é a intercalação progressiva de duas estratégias de comércio e desenvolvimento:  a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e a União Econômica Eurasiana (UEEA), que Putin e Xi discutiram em conexão com a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), fundada apenas três meses antes do 11 de setembro.

Não é de surpreender que uma das notícias de maior destaque em Pequim, nesta semana, tratasse das conversações sobre o comércio entre a China e os quatro 'istãos' da Ásia Central, todos eles membros da OCX.

"Direito" e "domínio" 

O mapa de percurso definitivo para o multilateralismo foi esboçado em um ensaio do Ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov, que merece cuidadoso exame.

Lavrov analisa os resultados das cúpulas recentes do G-7, da OTAN e dos Estados Unidos-União Europeia ocorridas antes do encontro Biden-Putin em Genebra:

Esses encontros foram cuidadosamente preparados de forma a não deixar a menor dúvida quanto a que a intenção do Ocidente era enviar uma clara mensagem: ele está unido, mais que em qualquer ocasião anterior, e fará o que acredita ser correto em termos de assuntos internacionais, forçando outros países, principalmente a Rússia e a China, a seguirem sua liderança. Os documentos adotados nas cúpulas de Cornualha e Bruxelas cimentaram o conceito de uma ordem mundial baseada em regras, como contrapeso aos princípios universais do direito internacional que têm a Carta das Nações Unidas como fonte primária. Ao assim proceder, o Ocidente, deliberadamente, se esquiva de formular com clareza as regras que afirma seguir, da mesma forma que evita explicar por que razão essas regras seriam necessárias.

Ao repudiar a forma como a Rússia e a China vêm sendo rotuladas de "potências autoritárias"  (ou  "iliberais", para seguir o mantra da moda no eixo Nova York-Paris-Londres), Lavrov esmaga a hipocrisia Ocidental: 

Ao mesmo tempo em que proclama seu 'direito' de intervir nos assuntos internos de outros países a fim de promover a democracia tal como ele próprio a entende, o Ocidente perde instantaneamente todo e qualquer interesse quando levantamos a perspectiva de tornar mais democráticas as relações internacionais, inclusive com a renúncia a atitudes arrogantes e o compromisso de nos atermos a princípios universalmente reconhecidos do direito internacional, e não a 'regras'. 

A partir daí, Lavrov introduz uma análise linguística dos termos "direito" e "regras". 

Em russo, as palavras "direito" e "regras" têm uma origem comum. Para nós, uma regra genuína é inseparável do direito. O mesmo não acontece nas línguas ocidentais. Por exemplo, em inglês, as palavras "direito" (law) e "regras" (rules) não guardam qualquer semelhança entre si. Percebem a diferença? "Regra" não se refere tanto ao direito, em termos de leis geralmente aceitas, mas sim às decisões tomadas por aquele que domina ou governa. Também é digno de nota que "rule" (em inglês) tem a mesma raiz que "ruler" (régua), que tem como um de seus significados o instrumento de uso cotidiano destinado a medir e a traçar linhas retas. É possível inferir daí que, com seu conceito de "regras" (rules), o Ocidente tenta fazer com que todos se alinhem em torno de sua própria visão, ou aplicar o mesmo metro a todos, para que todos se coloquem em uma mesma e única fila.

Resumindo: a estrada rumo à multipolaridade não seguirá "ultimatums". O G-20, onde os BRICS têm representação, é uma "plataforma natural" para "acordos mutuamente aceitos". A Rússia, por seu lado, vem liderando uma Grande Parceria Eurasiana. E uma "ordem mundial  policêntrica" implica a tão necessária reforma do Conselho de Segurança da ONU, "fortalecendo-o com países asiáticos, africanos e latino-americanos".

Será que os Senhores Unilaterais aceitarão trilhar essa estrada? Por cima de seus cadáveres! Afinal, a Rússia e a China são "ameaças existenciais". Daí nossa angústia coletiva, nós, os espectadores postados ao pé do vulcão.

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