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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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A longa invenção da adolescência

Cambridge mostra que a adolescência prolongada redefine juventude e adultez, exigindo que sociedades repensem direitos, expectativas e limites

Para a juventude o trabalho se transformou num item de luxo (Foto: Divulgação )

A pesquisa divulgada hoje pela Universidade de Cambridge, publicada na Nature Communications, derrubou mais um tijolo das certezas com que organizamos a vida. Segundo os cientistas, o cérebro humano só alcança sua maturidade estrutural por volta dos 32 anos. Antes disso, permanece em transição: redes em reorganização, conexões sendo refinadas e impulsos em processo de moderação. A adolescência, que já se imaginou terminada aos 18 e, depois, aos 25, agora se estende até o limiar dos 30 e poucos.

Do ponto de vista neurológico, portanto, seguimos adolescentes por mais tempo do que a cultura jamais supôs. E isso tem implicações que atravessam política pública, vida familiar, mercado de trabalho e saúde mental.

Como psicanalista, observo algo similar nos consultórios: grande parte dos conflitos que chegam à mesa não provém de patologias graves, mas de transições mal compreendidas. A vida exige respostas adultas de pessoas cujo aparelho psíquico e neurológico ainda está tateando, construindo rotas internas e tornando-se capaz de articular desejo, responsabilidade e consequência de modo mais estável. A ciência agora confirma o que a clínica percebe há décadas: há um descompasso entre a pressa social e o ritmo real de amadurecimento.

Se interpretarmos os dados de Cambridge como a nova régua da biologia, não podemos esquecer que a cultura também modela suas próprias fronteiras. A adolescência, como entendemos hoje, nasceu no pós-Segunda Guerra, quando sociedades industrializadas criaram um espaço entre infância e adultez para permitir experimentação, formação prolongada e certa licença para errar. Era o tempo de ser jovem, com seus rituais, modas e discursos próprios.

Mas, na prática, o jovem era — e ainda é — um “adulto café com leite”: alguém autorizado a circular perto do mundo adulto sem receber todo o peso das consequências. O estudo não amplia apenas um conceito; amplia a moldura que sustenta nossa interpretação da experiência humana. Para a neurociência, o cérebro só alcança uma organização adulta robusta aos 32 anos. Para a cultura, essa passagem sempre dependeu de ritos que hoje perderam nitidez: casar, adquirir casa própria, pagar as próprias contas, assumir responsabilidades duradouras.

Com tais marcos dissolvidos ou adiados, o corpo social já percebia a prolongação da juventude. Faltava o selo biológico.

A vida adulta que encolhe

A descoberta introduz um paradoxo inquietante: se a adolescência agora termina aos 32 e o início da velhice se aproxima dos 60, a adultez — esse território de equilíbrio entre potência e estabilidade — torna-se uma faixa mais estreita. O sujeito que atravessa os trinta ainda está concluindo ajustes internos e, pouco depois, já percebe os primeiros sinais de reorganização típica do envelhecimento.

Não se trata de tragédia biológica, mas de uma mudança estrutural que exige revisão das expectativas sociais. Continuamos pedindo decisões definitivas — carreira, filhos, endividamento de longo prazo — justamente quando o cérebro está no auge da vulnerabilidade adaptativa. Nas pontas desse arco, aumentam diagnósticos de ansiedade, depressão, impulsividade e dificuldades de organização emocional e financeira. A psicanálise reconhece esse terreno: é o espaço em que a identidade ainda se acomoda, testando limites entre dependência e autonomia.

O estudo de Cambridge foi majoritariamente realizado com dados de países ocidentais de alta renda. Ele descreve um cérebro que pode se dar ao luxo de amadurecer devagar: acesso a escolaridade longa, tempo para experimentação e redes de apoio que permitem adiar responsabilidades domésticas e financeiras. No entanto, boa parte do mundo real não oferece essas condições.

Há jovens que, aos 15, já sustentam a casa; aos 17, cuidam de irmãos; aos 20, enfrentam jornadas precárias de trabalho. Para eles, a adolescência biológica continua existindo, mas é atropelada por necessidades imediatas. A cultura exige adultez de cérebros ainda em construção. Não é coincidência que os índices mais altos de sofrimento psíquico se concentrem justamente nas camadas que amadurecem “na marra”.

O Brasil convive com esses dois extremos: a juventude que permanece na casa dos pais até perto dos trinta e aquela que jamais teve esse privilégio. Um lado ganha tempo; o outro não teve tempo nenhum. A diferença entre eles não é esforço individual — é contexto.

O desafio para as políticas públicas

Se aceitarmos os dados de Cambridge como referência séria, governos não podem continuar tratando a faixa dos 18 aos 30 como uma espécie de vácuo administrativo. É o período mais plástico do cérebro e, por isso mesmo, o mais determinante. Políticas de saúde mental precisam ser contínuas, acessíveis e livres de estigma. Programas educacionais devem prever recomeços e requalificações, porque a maturidade cognitiva só se consolida depois dos 30. E o mundo do trabalho precisa parar de exigir certezas prematuras.

As leis não vão — nem devem — mudar por causa de um estudo. A maioridade civil permanece onde está. Mas a compreensão social precisa acompanhar o conhecimento científico: exigir plenitude adulta aos 18 é ignorar o que a biologia afirma e o que a clínica testemunha.

O estudo de Cambridge não infantiliza ninguém. Ele convida a um olhar mais honesto sobre o tempo humano. A travessia entre adolescência e adultez não é um portão, mas uma ponte. Cada pessoa a atravessa em velocidade própria, negociando impulsos, culpa, ambições e fragilidades. Quem acompanha essa jornada — pais, professores, gestores e terapeutas — precisa reconhecer a delicadeza desse processo.

Se a adolescência neural vai até os 32 anos, isso não nos autoriza a adiar indefinidamente as responsabilidades, mas nos permite substituir a autocrítica feroz por uma disposição mais generosa consigo mesmo. E lembra que, mesmo na fase em que a cultura nos chama de adultos, seguimos todos, por dentro, rascunhos em aperfeiçoamento.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.