CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Tiago Basílio Donoso avatar

Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

26 artigos

blog

A luta brasileira

Nas periferias de todas as nossas cidades está sendo travada uma luta entre a Misericórdia e a Salvação, a salvação dos outros ou a salvação de si

(Foto: Ricardo Moraes/Reuters)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

O que é o Brasil? E o que é a luta brasileira?

Fomos descobertos, e descobertos deixamos de ser nus; sofremos a loucura colonizadora, o tufão de insensatez que fez caravelas girarem nos ventos, indo ao sul para ir ao norte, com cavalos empinados no convés e passando sobre os arranha-céus submersos dos naufrágios, com seus mastros e moedas; suportamos delírios portugueses, holandeses, franceses, fomos imaginados como Tróias verdes ou como Paraísos assustadores, e do alto do sol se poderia observar a diáspora da África, do primeiro continente humano, o maior e mais cruel êxodo que viu o extenso universo; em nós se realizaram massacres, missões, colheitas, nascimentos e mortes de rituais; da insanidade que parecia passageira e que tomou a Europa de assalto, como uma cruzada por uma Jerusalém transoceânica e amazônica, surgiu o imperialismo, a continuação do mesmo mas agora em uma nova febre, pelo impaludismo do aço, do ferro, dos dragões de vapor, de teares aracnídeos se multiplicando e de meninas morrendo entre fusos no castelo de um conde Matarazzo. Trocamos de metrópole, cultivamos nossa adoração ao estrangeiro conquistador e nosso desprezo aos estrangeiros vizinhos, e até hoje, quando passa uma ferrari, a veneramos com perplexidade, como uma carruagem em que fosse um barão de nome impronunciável.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Somos mortos como baratas. Pedreiros, somos descendentes dos maçons verdadeiros, construímos cidades sobre cidades sobre cidades, palimpsestos de pau-a-pique, pedra, tijolos, cimento e concreto. Carregamos latas de tinta cheias até a borda de água, a deitamos em um vulcão de cimento, areia e pedra, e com uma enxada ainda agrária criamos uma lava fria, com um quê inacreditável de panificação. As ruas do nosso país todas têm essa ferida, essa úlcera circular no asfalto que as enxadas deixaram e não puderam raspar com seu som áspero, brancas como fantasmas. E em todas as nossas vilas, cidades, metrópoles, há um de nós, dessa linhagem maçônica, que despencou de andaimes, perdeu membros em ferramentas circulares, morreu ou viu morrer, e em nossos túneis um ou outro foi embalsamado em caminhões de asfalto e espera o dia do Juízo como uma estátua, sabendo o que outros ignoram: que neste duro inferno é perceptível que o Brasil é uma grande Pompéia de vulcões artificiais.

Somos guaranis-kaiowás e jogamos uma pelada no terrão, e um de nós, ao fazer o gol, pula e dá um soco no alto - imitando um Pelé nunca visto, vivo e já mítico, em cujo redor floresce um matagal de histórias, dez gols em um único jogo que nos explicam como surgiram os doze trabalhos de Hércules. Entendemos que a grandiosidade não é ser excelente em um ofício, mas misterioso nele; que ser grande, embora o auge do indivíduo, é apenas tornar-se pretexto para textos infinitos, que dão a nós o direito de mentir suavemente e de multiplicar mistérios. Trabalhamos a roça e os ritos, vemos o enxame de mosquitos sobre o Araguaia e vemos que se aproximam as balsas com nossos parentes distantes, que há duzentos anos se foram e agora voltam enlouquecidos pelo fundamentalismo do ouro e da cruz.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Somos uma terra imensa populada por bicicletas e motos, sucedâneos dos cavalos, jegues e mulas, e na frente do bar onde se cultua a virilidade, entre bufões com cirrose, tristes com seu eight pendendo da boca, na calçada está ela, parada, a bicicleta. Um carroceiro deixa sua carroça ao lado, como um berbere que carregasse um mundo de latas e papelões pelo deserto, e entra no bar da cidade, do país movido a tração humana. Um caminhoneiro, com medo de Deus, se protege contra ele com imagens de Nossa Senhora e um terço, e passa vibrando pelo asfalto em pedaços rumo a 3 mil quilômetros de caravana, ouvindo no rádio uma canção de Roberto Carlos - símbolo nacional de rebeldia, de conformismo, de ternura, de um sebastianismo lírico, utópico e vazio, que quando toca atrai feito um deus doméstico uma multidão de senhoras, a versão pérfida das mães da praça de Maio.

Somos um país que cultua de modo carnavalesco e paradoxal a amnésia. As cores verde e amarelo têm o poder de apagar a história. Uma nação que se impôs pela veneração masculina dos carros e feminina das casas; os homens adoram o futebol, uma tourada humana de leis imprecisas, defendida por pequenos exércitos paramilitares cada qual com a bandeira de seu feudo; prestigiam-se os defensores brutais e os atacantes que devolvem a humilhação secular na confusa humilhação do drible; somos uma multidão de empregadas domésticas que trabalham para famílias com nome de conquistadores estrangeiros, e tiramos o pó da nossa terra debaixo de seus herméticos objetos importados. Nossos patrões blasfemam porque não introjetamos sua noção de ordem, gritam conosco porque suas meias não estão no lugar onde não as guardaram. Nas nossas cidades, de norte a sul, correm rios de álcool, e a força de ocupação nos mata de manhã, à tarde, à noite, arrasta nossos corpos pelos becos puxando-nos por uma perna, em que ainda se prende um atávico chinelo. Aqui, consideram-se patriotas apenas aqueles que odeiam o próprio povo.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Trabalhamos como mineiros. Morremos cedo, envelhecemos precocemente, em todas as nossas casas há o cheiro comum de alho, cebolas e café, ou há apenas o cheiro oco da fome. Nosso cotidiano é duro e soa ora a tráfego, ora a galinhas, sempre rimado pela válvula de uma panela de pressão. Somos pescadores, cozinheiros e contadores de causo; somos enganados todos os dias e por isso somos ferozes e cansados. Habituados aos maus-tratos, quando lutam conosco ou por nós desconfiamos de que nos fazem de bobos. E, quando fingimos que somos bobos, para que ninguém senão nós mesmos nos faça de otários, os outros acabam por nos crer alegres.

Vivemos entre muros, apertados em casas pequenas espremidas por latifúndios, temendo uns aos outros. Sabemos que o delírio mundial ainda não terminou sua lida conosco, e que a determinação que entortou o cabo da Boa Esperança ainda tirará sangue da terra e que as nossas peneiras ainda filtrarão, feito rins, cálculos de ouro entre o mercúrio. Pois é um sofrimento constante, renal, que produz ou aniquila qualquer utopia, que nos deixa prostrados e tendo que buscar alguma razão para sobreviver que não a pura sobrevivência. E é do solo desse sofrimento tão grande que vai surgindo pouco a pouco um Deus de Antigo Testamento, um Deus de deserto entre as florestas, em que ressuscitamos da areia e do cimento o Deus dos Exércitos - uma óbvia divindade da guerra. Nas periferias de todas as nossas cidades está sendo travada uma luta entre a Misericórdia e a Salvação, a salvação dos outros ou a salvação de si. A maioria das rádios está sintonizada nessa faixa de frequência em que ocorre a luta, os celulares buscam nos satélites essa sua dimensão turva, como de gasolina sobre asfalto.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Os conquistadores de nomes estrangeiros riem no palacete do Alto da Boa Vista. Mandam enviar a todos os bairros um Evangelho digital de alta octanagem. Uma das mensagens diz: “Cuidado para não salvarem novamente Barrabás” e, agora, cada um olha para o lado e vê Barrabás entre os irmãos. Escolhem um juiz que passou uma temporada no centro do império e planejam uma luta fratricida, enquanto dão prosseguimento à insanidade de quinhentos anos, que não acaba, não acabou e só deseja acabar quando o último diamante for arrancado da barriga aberta do último escravo. O Deus do Antigo Testamento - que como todo deus superado só retorna como demônio - começa a surgir nos frios basaltos das ruas, na massa panificada que ergue as casas, misturado como uma quimera com o protestantismo da salvação individual. Lhe faz frente, apenas, uma fé antiga, tribal, indígena, cristã e africana, de laço coletivo sólido e que se converteu nos séculos em Misericórdia, que permaneceu viva porque sabia que seria necessária - quando acabasse a insanidade branca dos homens que vieram do frio, montados a cavalo, e fosse preciso reconstruir o mundo; ou quando fosse preciso dar-lhe fim - quando a paciência da própria Terra se esgotasse.

Eis a hora que nos coube, a terra em que vivemos: o pêndulo oscila entre o nascimento de um país ou a morte do mundo.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247,apoie por Pix,inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO