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Daniel Samam

Daniel Samam é Músico, Educador e Editor do Blog de Canhota. Está Coordenador do Núcleo Celso Furtado (PT-RJ), está membro do Instituto Casa Grande (ICG) e está membro do Coletivo Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT).

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A Martirização como Estratégia Política

A tarefa é complexa e exige que a sociedade e instituições aprendam com este processo e reafirmem a soberania da democracia brasileira

Jair Bolsonaro à mesa (Foto: Carlos Moura / Ag. Senado)

Do ponto de vista da estratégia política, é muito racional afirmarmos que Bolsonaro cavou sua própria prisão ao descumprir sistematicamente as medidas cautelares impostas pelo Judiciário. Livre, mas inelegível e com sua mobilização em declínio, Bolsonaro se tornaria uma figura politicamente residual, fadado ao progressivo esquecimento. Encarcerado, mesmo em domicílio, ele se converte em um símbolo potente: o mártir perseguido pelo "sistema".

Esta transformação de uma derrota jurídica em um ativo político é uma manobra clássica. Em uma perspectiva weberiana, a liderança carismática se alimenta de provações e da demonstração de uma força que supostamente emana do "povo" contra as estruturas tradicionais. A prisão, nesse contexto, funciona como o teste que visa reforçar a sua legitimidade perante sua base.

Esta estratégia se insere em uma disputa pela hegemonia, nos termos de Gramsci. Não se trata apenas de uma batalha jurídica ou eleitoral, mas de uma "guerra de posição" no campo simbólico. Ao se colocar como vítima, Bolsonaro não apenas inflama seus apoiadores, mas busca corroer a confiança nas instituições democráticas, alimentando um discurso anti-sistema que encontra ressonância em uma sociedade marcada pela polarização. O objetivo é redefinir a narrativa, transformando o cumprimento da lei em um ato de tirania e a violação da lei em um ato de resistência. Trata-se de uma instrumentalização das próprias ferramentas democráticas para erodir a democracia por dentro.

Do ponto de vista do desenvolvimento nacional, a estratégia bolsonarista representa o oposto de um projeto de nação, como os idealizados por Celso Furtado ou Darcy Ribeiro. Enquanto estes pensadores se debruçaram sobre as causas do nosso subdesenvolvimento e propuseram caminhos para a superação através de um Estado forte e de um projeto nacional soberano, o que vemos hoje é a política convertida em espetáculo.

A dramaturgia da perseguição e do martírio serve como uma cortina de fumaça que impede o debate público sobre os verdadeiros desafios do Brasil: a reindustrialização, a desigualdade social, a inserção soberana no cenário geopolítico e o fortalecimento do nosso federalismo. A questão, portanto, é como proteger o Estado de Direito quando a sanção legal é convertida em capital político. A resposta, como sugere a análise, passa pelo fortalecimento institucional, mas isso não basta. É imperativo reconstruir uma cultura política que valorize o cumprimento da lei como um pilar inegociável da vida em sociedade. Em uma perspectiva habermasiana, é preciso resgatar a esfera pública do sequestro por narrativas que visam a manipulação e não o entendimento.

Por fim, é preciso a compreensão que a democracia brasileira não enfrenta um inimigo irracional, mas um adversário que opera com uma lógica sofisticada de desestabilização. Compreender a estratégia da vitimização e do martírio não é uma questão de celebrar ou lamentar uma eventual prisão, mas de desenvolver os antídotos institucionais e sociais capazes de impedir que a justiça seja permanentemente transformada em um palco para o populismo autoritário. A tarefa é complexa e exige que a sociedade e instituições aprendam com este processo e reafirmem a soberania da democracia brasileira.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.