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Mariana Portela

Psicóloga e escritora, autora de Viver é fictício (Editora Laranja Original)

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A Memória em Vertigem

Mnemosyne é Petra, que ilumina a intimidade poética de seus ancestrais em narrativas. A inexorável robustez de trazer às pessoas seus afetos. Parcial, como é óbvio. Sem vergonha, nem culpa. Porque só a mentira é travestida de facciosidade. Numa época em que a história não possui nenhum valor, a memória talvez seja nossa arma derradeira

(Foto: Democracia em Vertigem)
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“(...)Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?” Bernardo Soares in o Livro do Desassossego

Mnemosyne estava farta daquela espera ancestral. Ébria de viver na antemanhã do futuro, decidiu pôr fim aos séculos de clausura e mansuetude. Seus irmãos, Cronos e Oceanos, já haviam concluído seus reinados patriarcais. A hora de equilibrar sua ira com a potência havia, enfim, chegado. 

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Filha de Urano e Gaia, a deusa titã da memória, mãe das musas, avó dos aedos, sabia que sua aparição, em terra de mortais, poderia alterar o rumo de todos os périplos cósmicos. Também reconhecera o perigo de adentrar em Lethe, o rio do esquecimento. Ah, como sofrera, imbuída em desalento, quando cada alma anunciava o reencontro à vida!

Será que se lembraria de si mesma? Poderia dançar os cânticos que ela havia escrito? Quando seria venerada pelo Universo? 

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Sentou-se, à beira das águas, contemplativa. Seriam mais fortes as vicissitudes da existência, ao ponto de fazê-la perder-se por toda a eternidade? Sua partida seria também a última chance da humanidade. Como não falhar, desmemoriada?

Despiu-se. Nunca havia sido um corpo antes. Como sentiria ter seios, boca, ventre e pés? Há dor na gravidade? Quais exercícios poderia utilizar, como rituais de purificação?

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Mnemosyne, como uma nau que parte de Belém, mergulhou no alheamento, para receber a carne. Cronos, no entanto, foi imperdoável: não a deixaria ter a força de uma entidade, por completo. O deus do tempo conhecia os possíveis desdobramentos de sua fuga: a perda de seu trono. O tempo é quem mais se alimenta da amnésia. 

Assim, quando ingressou no planeta, Mnemosyne se fragmentou em doses homeopáticas de memória, em diversos seres ao redor do globo.

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A história já não reinava, soberana, na Terra. As mãos dos vencedores perceberam que há outras formas de escrever o mundo. Como não há unanimidade para o que foi vivido, é possível perverter os fatos e distorcê-los, em prol da ignorância.

Clandestina, Mnemosyne se defrontava com sua própria face, em poetas, em canções, em gritos pela democracia. Supliciada pelos pavores que se repetem, inadvertidos. 

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Seria possível, perdida em tantos rostos, preconizar? Recordava-se, aos poucos, nos corações de seus descendentes, de todas as guerras que havia perdido, milênios e milênios. Evocava as lições apreendidas, nas ditaduras, nos campos de concentração, nos massacres escravocratas, no sorriso banguela dos miseráveis. A descida ao inferno não teria valido a pena? Assistir ao inevitável término, do Olimpo, seria menos doloroso?

Certo dia, ao pesquisar os antigos deuses gregos, conheci Mnemosyne. É engraçado porque jamais havia ouvido falar da deusa que é a guardiã da função poética, a diva da música, a senhora da inspiração possuída. Hesitei. Eu sabia que esse conhecimento iria me mudar. Por que nos afastam, com tamanha canalhice, das verdades mais profundas da humanidade? Por qual motivo a sua feição me parecia tão familiar?

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“A memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”, dir-nos-á Platão. Todos os poetas são intérpretes de Mnemosyne. Capazes, como os profetas de escutar o futuro e acessar o invisível. Não à toa, Chico Buarque nos presenteou com o verso, em Choro Bandido: “saiba que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”. 

Mnemosyne supera o tempo e o espaço, porque aquilo que é, aquilo que foi e o que será, entrelaçam-se, em melodias e poemas. O cíclico, eterno retorno, faz parte da maldição do esquecer. Enquanto houver esquecimento, haverá repetição. 

Somos aqueles que lembramos de ter sido?

Contudo, após longa e profunda meditação, desvendei a misteriosa familiaridade com a deusa. Mnemosyne é Lian, que carrega, nos olhos clandestinos, a lucidez da aletheia. Sua memória, implacável, não se curvou a todas as notícias com que tentaram-na massacrar, camuflando o horroroso passado do Brasil. É curioso perceber como, diante de tantas falsidades, ausentar-se da violência é resistir ao fascismo. Porque todo fascista deseja que nos tornemos iguais a eles. Sanguinários e sujos, com o ímpeto de matá-los. Evadir-se dos absurdos é algo sublime.   

Mnemosyne é Petra, que ilumina a intimidade poética de seus ancestrais em narrativas. A inexorável robustez de trazer às pessoas seus afetos. Parcial, como é óbvio. Sem vergonha, nem culpa. Porque só a mentira é travestida de facciosidade.

Numa época em que a história não possui nenhum valor, a memória talvez seja nossa arma derradeira. 

Mnemosyne é a sagrada fonte da consciência.

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