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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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A miragem do Centrão: quando a política de gabinete encontra seu limite

O caminho é o embate público, é a construção pedagógica de consensos através do debate amplo, é a mobilização da base

Plenário da Câmara dos Deputados (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

Durante décadas, o "centrão" funcionou como peça fundamental da engenharia política brasileira. Esse aglomerado de partidos e parlamentares sem compromissos ideológicos rígidos desempenhava funções precisas no sistema: atuava como modulador, impedindo que propostas disruptivas — fossem de esquerda ou de direita — avançassem sem negociação; garantia a governabilidade através da conversão confiável de verbas em apoio legislativo; e, talvez mais importante, operava como instrumento de alienação política, permitindo que governos funcionassem "sem as ruas", sem movimentos sociais, sem a necessidade de construção participativa do debate público.

O centrão era, em essência, um atalho. Um desvio dos fluxos normais de informação e mobilização democrática que tornava possível uma política de gabinetes e acordos de bastidores, dispensando a partilha das decisões importantes com lideranças populares e organizações da sociedade civil. Era o lubrificante de um sistema que funcionava nas antessalas do poder, longe do escrutínio e da participação popular.

Mas essa entidade política, apesar de continuar presente em todas as equações do governo Lula 3, não existe mais. O centrão como força política real morreu no golpe contra Dilma Rousseff.

O Ponto de Inflexão: Quando a Confiabilidade Virou Miragem

O impeachment de 2016 não foi apenas a destituição de uma presidenta. Foi a ruptura definitiva das alianças políticas tradicionais e o início de um período marcado pela burla sistemática e pela mentira como método. O golpe institucionalizou a traição como estratégia política viável — e lucrativa.

Desde então, assistimos a um processo contínuo de esvaziamento do poder Executivo. Esse movimento, aliás, vem de longe: começou ainda no governo FHC, quando se proibiu que governos futuros pudessem governar por medida provisória com a mesma amplitude, e se intensificou dramaticamente com o atual Congresso avançando sobre o orçamento e esvaziando prerrogativas constitucionais da Presidência. O Executivo brasileiro está institucionalmente mais frágil do que em qualquer momento da Nova República.

Nesse cenário, com uma esquerda palaciana disputando contra uma direita que domina com maestria as ferramentas digitais de mobilização e desinformação, o centrão sofreu uma mutação perversa: tornou-se uma incubadora de fascistas. Hoje, serve primordialmente como espaço de reciclagem política, onde figuras que alimentam posturas antidemocráticas podem ficar temporariamente fora do radar da sociedade e do STF, "se curar" publicamente, para depois retornar ao campo da extrema-direita com as fichas parcialmente limpas.

O Erro Estratégico do Lulismo Contemporâneo

A tragédia do governo Lula 3 está precisamente em não reconhecer essa nova realidade. O planejamento político petista continua não apenas acreditando que o centrão existe, mas estruturando toda sua estratégia de governabilidade em torno dessa miragem. Recursos foram liberados, alianças foram costuradas, compromissos foram assumidos — e os votos prometidos jamais se materializaram de forma confiável.

Cada vez que o presidente Lula ouve seus assessores que ainda acreditam nessa entidade metafísica do centrão, ele perde. Perde votações no Congresso, perde controle sobre recursos políticos e financeiros, perde a confiança e frustra sua base de apoio genuína. É um ciclo de derrotas anunciadas, baseado em premissas que não correspondem mais à realidade política brasileira.

Por outro lado, há um padrão inverso igualmente revelador: toda vez que Lula busca uma política de embate, utilizando ferramentas pedagógicas — o que no jargão político se chama de "fazer o debate público" —, mesmo quando perde votações pontuais no Congresso, o presidente se fortalece politicamente. Seu capital político junto à base cresce, sua capacidade de mobilização se amplia, sua legitimidade se reafirma.

A Lógica da Polarização: Por Que o Centro Não Sustenta Mais

A questão é estrutural. Em sistemas polarizados — e o Brasil inequivocamente se tornou um quando deixamos de enxergar o "centrão" como realidade e passamos a vê-lo como o que realmente é, uma miragem política — a dinâmica eleitoral e de apoio funciona de maneira radicalmente diferente. Nesses sistemas, quem se aproxima dos polos ganha apoio e mobilização; quem pende ao centro perde voto, perde energia, perde razão de existir.

A morte do PSDB como partido relevante deveria servir como lição cristalina. O outrora poderoso partido da social-democracia brasileira definhou precisamente porque tentou ocupar um centro que não oferece mais sustentação política. Tentou ser moderado quando o momento pedia definição; tentou ser conciliador quando o momento exigia confronto.

Ler os Sinais: O Que o Momento Exige

O presidente Lula precisa ler os sinais que a realidade política brasileira não para de emitir. A cada derrota no Congresso baseada na premissa falsa de que acordos de bastidor com o centrão ainda funcionam, o recado fica mais claro: essa política acabou.

O caminho não é mais a conciliação de gabinete, não é mais a distribuição de cargos e verbas para garantir apoio parlamentar, não é mais a política sem as ruas. O caminho é o embate público, é a construção pedagógica de consensos através do debate amplo, é a mobilização da base, é a confrontação direta com projetos antidemocráticos.

O PT, se quiser sobreviver e cumprir seu papel histórico, precisa deixar de ser o partido da ordem e voltar a ser o partido da transformação. Não da revolução como slogan vazio, mas da mudança real como projeto político. Em um Brasil polarizado, não há mais espaço para o conforto do centro. Há apenas a escolha entre lutar pelo que se acredita ou desaparecer na irrelevância de quem tenta agradar a todos e não convence a ninguém.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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