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Jean Goldenbaum

Músico, professor da Universidade de Música de Hanôver, Alemanha. É membro fundador do ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’ e fundador do coletivo ‘Judias e judeus com Lula’

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A morte da alegria brasileira – ou “como na Alemanha explico sobre o fim da ‘Lebensfreude’”

O povo brasileiro não é mais feliz enquanto unidade social. E nem individualmente. Eu não consigo pensar em um único amigo ou amiga que viva no Brasil que me diga desde 2018 que hoje é feliz

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Por Jean Goldenbaum

Quem acompanha meu trabalho enquanto músico ou comentarista social e político, sabe que vivo na Alemanha. Embora tenha nascido e crescido no Brasil, passei a minha vida adulta e consciente toda aqui em terras alemãs. E hoje eu gostaria de dividir com vocês neste breve texto uma mudança radical que ocorreu na maneira com o qual se dá o meu diálogo com alemães (ou pessoas de outras nacionalidades que aqui vivem) a respeito do Brasil e sua sociedade.

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Bem, antes de mais nada, é preciso compreendermos que este cenário que descreverei ocorre hoje porque de fato a sociedade brasileira ingressou em 2016 em uma jornada que a levaria a desaguar em uma espécie de “nova ordem”. Caetano cantava que “alguma coisa está fora da nova ordem mundial”, não? Pois bem, o Brasil se retirou – e acredito que sem possibilidade de retorno – da até então vigente “ordem” que imperava no âmago de seu povo havia muito tempo. Refiro-me à questão do conceito da “alegria brasileira”. Ok, para quem vive no Brasil, talvez isto não seja tão claro, mas para quem existe inserido na dicotomia “terra natal – terra adotada”, isto é algo muito presente. Não para qualquer um, é claro, mas para quem é sensível a questões humanas e sociais. Eu, pessoalmente, enquanto judeu, me criei dentro de mais uma adicional dicotomia, característica deste povo: “terra judaica (seja ela física/real ou espiritual/imaginária) – diáspora”. Então, lidar com estas questões de percepção e assimilação dos povos e suas terras, e desenvolver isso em mim e em minha relação com o mundo, é algo inerente à minha vida.

Mas vamos à parte concreta da história, para que a leitora ou o leitor compreenda finalmente o que quero dividir com ela ou ele. É o seguinte: desde que imigrei à Alemanha enquanto jovem adulto, a palavra-chave para descrever o Brasil aos alemães – e também como estes descreviam a mim suas experiências com o Brasil – era “Lebensfreude”. Esta se traduz como “alegria de vida” ou “alegria pela vida” ou “alegria de viver”. Vejam, a fórmula era simples: o Brasil possui incontáveis problemas sociais. Há pobreza, há criminalidade, a vida é sempre difícil, é sempre um desafio; mas mesmo com tudo isso, o brasileiro é mais feliz, mais vivo, mais ativo, mais carinhoso, mais amigo, mais comunitário, mais simpático, mais “próximo do próximo” do que o alemão. O filósofo Epicuro já falava disso na Grécia Antiga, e sugiro a quem quiser que busque a grande obra do teórico da psicologia Abraham Maslow (1908-1970), que discute entre muitos outros temas, a questão de onde e como o conceito da alegria se localiza dentro dos sistemas humano e social.

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Enfim, tal fórmula funcionava também perfeitamente com muitos outros povos daqui da Europa, como os franceses, os ingleses, os austríacos, os nórdicos e por aí vai. Mas essa fórmula era verdadeira? Bem, não há definitiva e incontestável resposta científica, ou mesmo sociológica, para tal pergunta. Mas eu pessoalmente acreditava que era, e ainda acredito que era, de certa forma. Lembro-me de ter discutido com alemães diversas vezes sobre a impossibilidade de algo como o nazismo ou o fascismo ascender no Brasil. “Não, a sociedade brasileira não possui potencial colérico, destrutivo e autodestrutivo para abraçar algo assim. Uma minoria sim, é claro, mas massas e mais massas da população, não.”, era o que concordávamos eu, um alemão-brasileiro (ou brasileiro-alemão), e os alemães.

Os alemães, inclusive, frequentemente frisavam de maneira crítica à sua sociedade, como é um comportamento tipicamente germânico “ter tudo ao seu alcance, e ainda assim estar insatisfeito”. Sim, isto também é real. Grande parte da sociedade alemã é exatamente assim. Caminha pela vida permanentemente de cara fechada, achando tudo ao seu redor desagradável, e querendo o mínimo de contato para com o próximo. Ok, e o que mudou nessa história toda? Pois bem, o alemão continua igual, mas a parte do Brasil caiu por terra. O povo brasileiro não pode mais ser chamado de “povo alegre”, nem descrito dentro do universo da Lebensfreude. É a morte da alegria brasileira?

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A primeira vez em que fui confrontado de maneira quase cênica com esta realidade, foi justamente há alguns dias. Minha esposa e eu estávamos conversando com uma colega de trabalho dela, uma moça russa que cresceu na Alemanha. Como um dos assuntos preferidos de nós “estrangeiros-alemães” é falar mal das carrancas e da insatisfação perene dos alemães, a conversa rapidamente se direcionou à comparação das sociedades envolvidas nessa conversa. Ela contou sobre sua primeira infância na extinta União Soviética e sua subsequente relação com a comunidade russa na Alemanha. Não para nossa surpresa – afinal conhecemos muitos russos aqui e sabemos que há/havia grande semelhança social entre eles e os brasileiros –, surgiu também da parte dela a palavra-chave em questão, Lebensfreude, para descrever como os russos são mais felizes do que os alemães, mesmo tendo uma vida árdua, complexa, insegura social- e politicamente. Quando chegou nossa vez de descrever o Brasil, ela esperava que houvesse concordância e que falássemos também da tão óbvia e conhecida Lebensfreude brasileira. Mas pela primeira vez não foi isso que falamos. Não pudemos. Tivemos de desconstruir essa imagem, afinal ela simplesmente já não é mais verdade. E, se não sabíamos ao certo o quão verdade ela era outrora, hoje temos certeza de que não é.

O povo brasileiro não é mais feliz enquanto unidade social. E nem individualmente. Eu não consigo pensar em um único amigo ou amiga que viva no Brasil que me diga desde 2018 que hoje é feliz. E quando Bolsonaro desaparecer, ainda ficará tudo o que houve impresso na História. Dezenas de milhões de pessoas fazendo arminhas com a mão, externando abertamente seu ódio a minorias, seu desejo de violência, suas ameaças, suas intimidações, sua vocação para seguir um “mito” a la Hitler. Mesmo após o necessário processo de “desbolsonarização” – assim como houve o de desnazificação após Hitler – o povo não ficará impune das consequências do que se passou. Não, amiga russa, não espere mais a ideia de Lebensfreude no Brasil. Não espere mais a camisa da Seleção como símbolo de alegria, “marotisse”, descontração e amizade com todos. A “amarelinha” é hoje uma espécie de farda e o brasileiro provou ter tanto potencial para o Nazismo quanto tinha o alemão após a Primeira Guerra. Simples assim. Ou alguém duvida que se a história se seguisse para a construção de campos de concentração para “comunistas”, os seguidores do Führer brasileiro não o seguiriam de forma pia e devota?

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É, foi demais para a colega, e a conversa não caminhou muito em frente. Acho que ela e o mundo todo terão de aprender que o Brasil e sua sociedade ingressaram em uma “nova ordem”, a qual nos faz somente lembrar como passado da época em que acreditávamos – correta- ou incorretamente – que o povo era alegre e de certa forma imune a se tornar o que se tornou: a capital do Neonazisfascismo, um perigo ao mundo por ter abraçado uma mistura de ódio comunitário com ignorância negacionista, e ainda por cima bem no meio da mais catastrófica pandemia dos últimos cem anos.

Para finalizar a reflexão, deixo à cara leitora ou ao caro leitor o convite ao mesmo pensamento em que me encontro: estamos próximos dos cem anos da ‘Semana de Arte Moderna’ de 1922, um marco cultural na história do Brasil. E por que um marco? Porque este evento reunia artistas que se debruçavam em uma essencial questão: a da identidade brasileira. Se alguns anos depois um Andrade descreveria o brasileiro como um “herói sem caráter” (não mau-caráter, sem caráter mesmo), e outro Andrade sugeria a relação do “ser”, do “to be” com o “tupi”, hoje em 2021 estamos mais distantes de qualquer resposta acerca da identidade brasileira do que já estivemos em qualquer momento da história. Ou será que a resposta é que dentro da dieta antropofágica havia/há também os venenosos ingredientes do Nazifascismo, que talvez sempre estão presentes em toda e qualquer sociedade, somente esperando a temperatura certa para ebulirem? Sim, esta é a questão andradiana-shakespeariana do momento. Ah, e concluo propondo aqui desde já a “Nova Semana de 22”, que precisa acontecer no ano que vem, no centenário da original. Nela, nós artistas expressaremos a luta contra o Nazifascismo Brasileiro e todo o nosso desejo de construirmos finalmente uma identidade que – ainda que incerta e machucada – ao menos prove conter algum resquício da “Lebensfreude brasileira”. Afinal, só o que vemos hoje é um lado da sociedade abraçando o ódio, e o outro o combatendo, de forma bela e corajosa, mas não feliz. E mesmo vivendo a dez mil quilômetros do Brasil, para mim é hoje claro que não dá para ser feliz no Brasil do bolsonarismo.

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