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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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A morte de Miguel Otávio, 5 anos, deveria se somar às das vítimas da Covid-19

"O que importa se Sari apertou ou não aquele raio de botão? Que diferença faz, agora? O que importa é que para Sari, Miguel era um menino preto. Um estorvo no seu cotidiano com Mirtes", afirma a jornalista Denise Assis

(Foto: Reprodução)
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Por Denise Assis, para o Jornalistas pela Democracia 

Na semana em que o Brasil atinge a marca das 60 mil mortes pela Covid-19 – e não se iludam, não paramos por aí -, precisamos somar a este total mais uma vida. A de Miguel Otávio Santana, 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Souza, que prestava serviços na casa de Sari Corte Real. Miguel morreu em consequência de uma queda do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife, no condomínio conhecido por “torres gêmeas. Seu corpo voou de uma altura de 35 metros, mas na sua certidão de óbito deveria constar como causa mortis: coronavírus. Ou, para ser mais exata: desigualdade social.

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Hoje, quando as autoridades pernambucanas encerram o inquérito, é forçoso refletir o quanto é emblemático que esta história trágica se passe no Recife, onde muita gente de pele preta perdeu a vida, moída nas moendas dos engenhos de cana-de-açúcar, no século XVI, na condição de escravo. Ali, o tempo passou, mas o ranço escravocrata ficou entranhado na elite branca que explora, sem pudor, os seus serviçais. Sari é mulher do prefeito de Tamandaré, uma cidade vizinha, distante 104 quilômetros da capital. Para efeitos de contabilidade, o salário da empregada saía dos cofres da prefeitura, como funcionária do município. Para efeitos práticos Mirtes lavava, passava e cozinhava, em seu apartamento, no luxuoso bairro de São José, na capital. Uma transgressão a mais, nesta história já tão típica da vida nacional.

Além das tarefas da casa, Mirtes cuidava dos filhos da patroa e ainda pajeava o cachorro, um mimo na vida dos Corte Real, cujos cuidados ficavam a cargo dela, uma espécie de “três em um”, na casa de Sari. Atividades pelas quais não recebia um tostão a mais. Posso apostar.

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Para Mirtes, não havia risco de contágio ou direito de proteção ao filho, também sob o risco de pegar a doença, no deslocamento.  Sem ter com quem deixar o garoto naquele dia 2 de junho, em pleno isolamento social, a funcionária combinou com a patroa de levar o menino ao trabalho. Enquanto ela cumpria as tarefas que lhe cabiam, Sari fazia as unhas, comprometendo a saúde de mais uma pessoa, a da manicure que a atendia “em domicílio”. Devidamente protegida no regaço do seu lar, Sari se ocupava em escolher entre o esmalte “vermelho Gabrielle” ou o no tom “Rio 40 Graus”, para pintar as unhas. Quanto à Mirtes, coube descer com o cachorro, para uma volta no entorno do condomínio.

A morte de Miguel comoveu Recife, comoveu o Brasil, comoveu o mundo. Nessa terça-feira (30/06), porém, o advogado de Sari, Pedro Avelino, se apressou em afirmar, em entrevista à TV Globo, que a primeira-dama de Tamandaré disse ter “simulado” apertar o botão do elevador, que o levou para a morte.

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De acordo com matéria do site Metrópoles, publicada hoje, o laudo das perícias realizadas no prédio onde o menino Miguel Otávio morreu após cair do nono andar, aponta que Sari Corte Real, ex-patroa da mãe de Miguel, apertou o botão do elevador para a cobertura antes do fechamento da porta. O advogado de Sari defende que foi Miguel quem pressionou o botão do andar, de onde sofreu a queda. A linha de defesa escolhida por Pedro Avelino, vai acabar nos convencendo de que Miguel se matou. Com a frieza e o cinismo dos poderosos, Sari cuida de salvar a própria pele, enquanto Mirtes se dilacera de dor. Mais uma vez, querem impingir a culpa à vítima, numa atitude covarde, sobre quem não tem mais voz para se defender.

O que importa se Sari apertou ou não aquele raio de botão? Que diferença faz, agora? O que importa é que para Sari, Miguel era um menino preto. Um estorvo no seu cotidiano com Mirtes. O que importa nesta história é a dor que acompanha Mirtes, sem o seu único filho. O que importa é que a Covid-19 fez de Miguel uma vítima da desigualdade entre os que podem e os que não podem se proteger. O que importa, de verdade, é apurar porque o governo não se apressou em montar um cadastro eficiente, que excluísse militares e funcionários públicos, e incluísse Mirtes, para que ela pudesse optar por ficar em casa, cuidando de Miguel.

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Sari deve escapar do crime de homicídio e ser enquadrada, se muito, no artigo 133 do Código Penal (Lei 2848/40) – “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: pena – detenção, de seis meses a três anos”. Caso o abandono resulte em lesão corporal de natureza grave, a pena pode chegar à reclusão de quatro a doze anos. Um copo de garapa, para quem disser quantos anos Sari deve pegar. Se pegar. Castigo mesmo, é curtir a saudade de arrumar o quarto do filho que já morreu.

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