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Ivan Rios

Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

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"A Mulher no Jardim" – entre o horror e a complexidade psicológica

A Mulher no Jardim não é apenas um filme — é uma experiência que instiga, provoca e desafia

"A Mulher no Jardim" – entre o horror e a complexidade psicológica (Foto: Divulgação)

Quando me deparei com as críticas sobre A Mulher no Jardim, minha reação inicial foi um misto de ceticismo e apatia. Sempre me incomodou a forma como o gênero suspense/terror é frequentemente relegado a um papel secundário na análise cinematográfica, tratado como um mero veículo para sustos e entretenimento fugaz, desprovido de profundidade temática. Esse desconforto se tornava ainda mais evidente pelo fato de eu ser um fã inveterado do gênero, alguém que enxerga sua capacidade de provocar reflexões intensas e explorar camadas narrativas que vão além da superfície. É frustrante perceber como, historicamente, essas produções são menosprezadas pela crítica tradicional, sendo raramente consideradas dignas de análises profundas. Afinal, o horror — especialmente o psicológico — pode ser uma ferramenta poderosa para expor dilemas humanos e sociais, muitas vezes com mais contundência do que obras dramáticas aclamadas.

Com essa percepção crítica em mente, iniciei minha experiência com o filme preparado para encontrar limitações e armadilhas narrativas comuns ao gênero. No entanto, A Mulher no Jardim desafiou essas expectativas desde os primeiros minutos e, ao longo da trama, revelou-se uma obra comovente, densa e inquietante, transcendendo os estereótipos do suspense/terror e entregando uma reflexão genuína sobre o sofrimento psicológico e a precariedade social. A jornada da protagonista, Ramona, é construída com uma complexidade emocional rara, costurando sua dor com os desafios do cotidiano de forma crua e tangível. O filme não se contenta em apenas sugerir essas temáticas; ele as materializa, tornando cada detalhe visual e narrativo uma peça essencial para compreender a deterioração mental da personagem. Essa abordagem inesperada transformou minha experiência, revelando que A Mulher no Jardim não apenas honra o gênero do qual faz parte, como também expande seus limites ao mergulhar em questões existenciais de maneira profundamente sensível e impactante.

A condição racial dos personagens em A Mulher no Jardim é um aspecto que merece atenção, especialmente considerando a forma como o filme opta por não abordar diretamente questões raciais. A protagonista, Ramona, e seus filhos são negros, mas a narrativa não os coloca em situações explícitas de enfrentamento ao racismo. Em vez disso, o filme os apresenta como indivíduos que vivem suas próprias dores e desafios, sem que sua identidade racial seja o centro da trama. Essa escolha pode ser interpretada de duas maneiras: por um lado, é uma forma de representação que normaliza a presença de personagens negros em histórias universais, sem reduzi-los a arquétipos de sofrimento racial; por outro, pode ser vista como uma oportunidade perdida de explorar como a interseção entre raça e saúde mental afeta a vida de pessoas negras, especialmente em sociedades onde o racismo estrutural impacta diretamente o acesso a cuidados psicológicos e psiquiátricos.

Ao traçar um paralelo entre A Mulher no Jardim e Não Solte, encontramos pontos de convergência significativos. Ambos os filmes exploram o terror psicológico como uma ferramenta para discutir temas profundos, como trauma, luto e isolamento. Em Não Solte, a protagonista também enfrenta uma ameaça que parece estar ligada a sua própria psique, criando uma atmosfera de dúvida sobre o que é real e o que é fruto de sua mente fragilizada. Assim como Ramona, a personagem de Não Solte é uma mulher negra que precisa lidar com forças externas e internas que a desafiam constantemente. A presença de uma figura misteriosa que representa o medo e a incerteza é um elemento comum entre as duas obras, funcionando como uma metáfora para os desafios psicológicos enfrentados pelas protagonistas.

Além disso, os dois filmes compartilham uma abordagem que mistura o horror com o drama social. Em A Mulher no Jardim, a precariedade financeira e o luto são elementos que moldam a jornada de Ramona, enquanto em Não Solte, a protagonista enfrenta dilemas que envolvem sua identidade e sua luta para manter o controle sobre sua própria vida. Ambos os filmes utilizam o terror como um meio de amplificar questões reais, tornando-as ainda mais impactantes para o espectador. Essa interseção entre horror e crítica social é um dos aspectos mais fascinantes dessas produções, pois permite que o público experimente o medo não apenas como uma emoção passageira, mas como um reflexo de problemas que existem fora da tela.

O filme constrói sua protagonista com um requinte psicológico notável. Ramona, uma mãe viúva, tenta manter seus dois filhos em meio ao caos emocional e financeiro que sua vida se tornou. A ausência do marido é um fantasma onipresente, não apenas na atmosfera soturna da casa, mas no estado mental da personagem. Com recursos escassos e um cotidiano repleto de dificuldades — desde a falta de fósforos até a incerteza quanto à energia elétrica —, o filme traça uma realidade dolorosamente familiar a milhares de mulheres ao redor do mundo, especialmente em países marcados por desigualdades estruturais. O brilhantismo da direção de Jaume Collet-Serra reside em sua habilidade de equilibrar o terror psicológico com uma abordagem dramática visceral. A ambientação é claustrofóbica, sufocante, e se torna uma extensão da mente de Ramona. A cinematografia de Pawel Pogorzelski é um dos elementos que sustentam essa imersão, utilizando sombras e enquadramentos apertados para ampliar o desconforto do espectador. Em muitos momentos, o silêncio absoluto é mais perturbador do que qualquer efeito sonoro, permitindo que a angústia da protagonista se infiltre lentamente na percepção do público.

Outro aspecto crucial é a representação da saúde mental, um tema que o filme aborda de forma complexa e ambígua. Ramona manifesta sintomas de depressão severa, insônia e ansiedade crescente, além de episódios que sugerem transtornos psicóticos. Aqui, o roteiro nos coloca em uma zona nebulosa: os eventos sobrenaturais que permeiam a trama são de fato manifestações do desconhecido ou reflexos da deterioração psíquica da protagonista? Essa dubiedade é um dos acertos mais brilhantes do filme, pois obriga o espectador a interpretar a narrativa sob diferentes prismas.

Contudo, a forma como a esquizofrenia e outros transtornos mentais são tratados gera preocupação. A psiquiatria há tempos debate a estigmatização dos pacientes por meio do cinema, e A Mulher no Jardim, ainda que delicado em muitos pontos, pode reforçar certos preconceitos ao associar sintomas psicóticos ao horror e à imprevisibilidade. Essa questão merece atenção, pois afeta diretamente a forma como a sociedade encara indivíduos que vivem com transtornos mentais.

O luto, elemento central da trama, é tratado com profundidade e respeito. Ramona não apenas sente a ausência do marido, ela é consumida por ela. Estudos indicam que a dor da perda pode se manifestar de formas inesperadas, agravando quadros de depressão e desorganizando completamente a percepção da realidade. O filme exemplifica isso com maestria ao inserir pequenos detalhes que evidenciam a solidão e a carga emocional que recai sobre a personagem. A precariedade material se torna um reflexo da fragilidade psicológica, unindo dois aspectos que raramente são explorados juntos no cinema.

A abordagem do suicídio no filme, por outro lado, divide opiniões. Se por um lado a obra evita a romantização do tema, por outro, certas escolhas narrativas podem ser interpretadas como uma apologia à desistência diante da dor. Sabemos que o suporte social e familiar são fundamentais na prevenção do comportamento suicida, e A Mulher no Jardim evidencia exatamente o que acontece quando esse suporte é inexistente. O desamparo de Ramona é retratado com brutal honestidade, mas o desfecho da obra levanta questionamentos sobre a responsabilidade do cinema ao lidar com temas tão sensíveis.

O sentimento de culpa e redenção permeia toda a jornada da protagonista. Ramona oscila entre a autopunição e sua necessidade de proteger os filhos, criando um conflito interno profundamente humano. Em termos psiquiátricos, a culpa é uma das barreiras mais difíceis para o tratamento da depressão, pois impede a recuperação e reforça um ciclo de autodestruição emocional. O filme compreende essa dinâmica e a traduz em cenas que, longe de serem meras exposições narrativas, são um estudo da complexidade da psique humana. O desempenho de Danielle Deadwyler merece destaque especial. Sua atuação transcende a simples interpretação de uma mulher em sofrimento: ela incorpora a essência de alguém consumido pela dor, utilizando expressões sutis e uma linguagem corporal impecável para transmitir o caos interno de sua personagem. Essa entrega é crucial para a imersão emocional do espectador e contribui significativamente para a força da narrativa.

Apesar dos méritos indiscutíveis, o filme não está isento de críticas. Algumas escolhas na construção do terceiro ato geraram controvérsia, especialmente no modo como a trama se desenrola em sua conclusão. Além disso, como mencionado anteriormente, o uso de elementos sobrenaturais para ilustrar transtornos mentais pode reforçar estereótipos prejudiciais, algo que merece reflexão.

No entanto, A Mulher no Jardim não é apenas um filme — é uma experiência que instiga, provoca e desafia. Ele nos obriga a olhar para questões que preferimos evitar, como o impacto do isolamento, da vulnerabilidade social e da ausência de suporte emocional. Sua relevância ultrapassa as barreiras do entretenimento, tornando-se um estudo cinematográfico sobre a condição humana em sua forma mais crua e dolorosa.

Se minha expectativa inicial era de descrença, minha percepção final é de profundo respeito pelo que este filme representa. A Mulher no Jardim se destaca não apenas como uma obra de suspense/terror, mas como uma reflexão necessária sobre temas que exigem discussão urgente. Trata-se de um filme que, gostando ou não, não pode ser ignorado. TÍTULO ORIGINAL: The Woman in the Yard | Ano de Produção 2025 | Estados Unidos

DIREÇÃO: Jaume Collet-Serra

ROTEIRO: Sam Stefanak

ELENCO: Danielle Deadwyler, Okwui Okpokwasili, Russell Hornsby, Peyton Jackson, Estella Kahiha

DISTRIBUIDORA: Universal Pictures

PRODUTORAS: Blumhouse

DURAÇÃO: 88 min

SINOPSE:

Ramona, uma mulher marcada por uma perda recente, decide recomeçar a vida em uma casa isolada nos arredores da cidade. O jardim, antes um refúgio de tranquilidade, começa a revelar segredos perturbadores. Entre vislumbres fugazes de uma presença desconhecida e eventos inexplicáveis, Ramona se vê presa em um ciclo de medo e dúvida.

Enquanto investiga o que está acontecendo, a linha entre realidade e ilusão se torna cada vez mais tênue. O filme conduz o espectador por um labirinto psicológico angustiante, onde cada detalhe esconde um mistério e cada escolha pode levar a um desfecho inesperado.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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