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Rodrigo Lamore

Rodrigo Lamore é cantor, músico e compositor. Possui trabalho autoral e atualmente vive de shows voz e violão em barzinhos do Rio de Janeiro. É oriundo da cidade de Guanambi - BA e tem quase trinta anos de carreira musical.

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A música usada como instrumento de opressão de classe

Como a retórica elitista usa a música para reforçar preconceitos e manter hierarquias sociais

Racionais MCs (Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação)

Existem diversas maneiras de promover a discriminação de classe via retórica, e isso é algo comum no Brasil, um país de formação escravocrata. Diferentemente do modelo de colonização inglesa nos EUA, de segregação racial, por aqui, devido à maioria indígena e negra, adotou-se um método, por parte dos portugueses, de se misturar à população — tática possivelmente herdada da era da ocupação árabe na Península Ibérica. Dessa forma, promoveu-se intencionalmente a divisão de classes não apenas pela via econômica, mas também pela cultural e racial, criando assim subgrupos dentro da base da pirâmide: brancos pobres, indígenas, morenos (mistura de branco com negro ou branco com indígena), negros nascidos no Brasil, negros nascidos no continente africano etc. Isso evitaria a união dos oprimidos contra o opressor português. Com o passar dos séculos e já no século XXI, essa divisão persiste, e identificamos esses traços no dia a dia, de maneira sutil, em especial nos diálogos entre os cidadãos.

Assim como expressões do tipo “trombadinha”, “malandro”, “favelado”, “bandidinho”, “carioca”, “cachaceiro” são senhas para se referir pejorativamente às pessoas pobres e negras — porém sem ser acusado de aporofobia ou racismo —, usando como objeto de análise a música, temos também frases que proferimos e ouvimos no cotidiano: “funk não é música”, “na minha época era melhor”, “rap é música de bandido” e por aí vai. Todas possuem a mesma finalidade, que é a discriminação de classe.

Em grande parte, essas ações partem de indivíduos pertencentes à classe média, como forma de distinção, já que, em última instância, todos somos trabalhadores, mas o ressentimento necessita de paliativos para ocorrer a separação — senão pela via econômica, pelo menos pela via simbólica. Até os anos 1990, mesmo com a maioria absoluta do país imersa em uma cultura conservadora, tendo saído há pouco tempo de uma ditadura militar, as divisões de classes eram mais precisas e facilmente identificáveis, sendo assim desnecessário ou pouco importante o uso maciço desses expedientes, embora ainda bastante utilizados. Com a subida ao poder do Partido dos Trabalhadores e, graças às políticas sociais implementadas a partir de 2003, o país assistiu ao fenômeno do surgimento das hoje famosas classes C e D, cidadãos anteriormente vivendo na extrema pobreza, ou no “fio da navalha”, que de repente passaram a consumir e viver um estilo de vida similar ao vivido apenas pela classe média (e, em algumas situações, até mesmo pelas classes altas). E agora? Como as classes intermediárias poderiam dar prosseguimento às suas distinções materiais, culturais e estéticas, já que todos estavam tendo as mesmas experiências dentro do sistema capitalista nacional?

No âmbito econômico, surgiram então as novas expressões: “vagabundos do Bolsa Família”, “governo assistencialista”. Na área educacional, temos: “doutrinação da esquerda”, “professores vagabundos”, “professores de História doutrinadores”, “cotista que tirou a vaga da minha filha”. No setor de segurança pública: “direitos humanos para humanos direitos”, “direitos humanos defendem bandidos”, “bandido bom é bandido morto”. E, na música — mas que também pode se estender para toda a arte e cultura —: “mamata da Lei Rouanet”, “Pabllo Vittar engravidou de Lula”, “artista é tudo vagabundo” e, mais especificamente na música, todos aqueles citados no parágrafo anterior.

Nada disso é novo, exceto a embalagem. No entanto, em seu âmago, o que se passa aqui é a velha e boa estratégia de guerra, popularizada na frase “dividir para governar”. No caso brasileiro, trata-se de dividir a classe trabalhadora explorada para impedir a mudança. Os colonizadores portugueses fizeram isso nos primórdios do Brasil. O sistema financeiro, os ruralistas, os neopentecostais, a mídia tradicional e quintas-colunas promovem as mesmas práticas hoje. Em cada esfera de ação, símbolos específicos. Na música, é a superioridade musical, onde o “eu escuto música de qualidade e você não” é simplesmente a adaptação de “eu tenho dinheiro e você não” ou “eu sou gente e você não”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.