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Adilson Paes de Souza

Pós doutorando em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). Membro do LAPSO-Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do IPUSP.

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A necropolítica no Brasil - de Vladimir Herzog às operações policiais na atualidade

Infelizmente, Vlado não foi a única vítima de um sistema que extermina pessoas

Rio de Janeiro (RJ) - 29/10/2025 - Protesto contra a operação policial que deixou mais de 120 pessoas mortas no Complexo da Penha, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Para Achille Mbembe “a soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. Soberano é aquele que decide em um Estado de Exceção (Carl Schimitt) e é aquele que não respeita quaisquer limites, ele personifica o limite (Georges Bataille).

Estas reflexões sobre soberania são, a meu ver, adequadas para a discussão que proponho sobre a Necropolítica – a submissão da vida ao poder da morte, desde há muito tempo em curso no nosso país, como expressão do poder estatal. A mentira, a dissimulação, segredo (a falta de transparência) e o terror imposto à sociedade são elementos essenciais para a sobrevivência deste poder.

Devem ser envidados todos os esforços para que os agentes estatais possam agir com desenvoltura e liberdade para fazer o que bem entenderem – e para isso foram treinados – cuja finalidade é vencer os ditos inimigos da nação. Doutrina de Segurança Nacional, Biopoder e Estado de Exceção são conceitos que se entrelaçam. O exercício do poder na Doutrina de Segurança Nacional não questiona meios e não reconhece limites. Como afirmou Joseph Comblin “No plano da política interna a segurança nacional desconhece as barreiras das garantias constitucionais: a segurança não conhece barreiras”, tudo, absolutamente tudo, é permito no combate aos inimigos da nação. Ou seja, se as garantias constitucionais atrapalham no combate, elas devem ser ignoradas.

Martha Hughins, Rita Haritos-Fatouros e Philip Zimbardo, ao desenvolverem pesquisas sobre policiais pertencentes ao aparelho repressor do regime ditatorial brasileiro, apontam para a divisão destes agentes em perpetradores diretos da violência – aqueles envolvidos diretamente na tortura, no assassinato e, muitas vezes no desaparecimento forçado de suas vítimas – e em facilitadores, aqueles que davam cobertura para que os crimes acontecessem ou davam um verniz de legalidade, infortúnio ou pudessem permanecer na clandestinidade. 

Um exemplo desta estratégia foi a criação do Auto de Resistência, em 02 de outubro de 1969, pela Ordem de Serviço N º 803 da Superintendência da Polícia do Estado da Guanabara. A partir de então bastava a versão dos policiais para haver o registro do fato, geralmente narrando a resistência à prisão e a inevitabilidade da morte do suposto agressor, que era incriminado pela sua própria morte. A instituição do Auto de Resistência representou a consolidação do esforço estatal para dar uma roupagem de legalidade, de forma sumária, aos atos praticados pelos agentes da repressão. Muitos são os casos em que opositores do regime foram mortos pela repressão, sob a égide do Auto de Resistência. A mentira adquiria contornos de verdade e de legalidade. Feita esta introdução, passo agora a tratar de dois fatos havidos em momentos distintos e distantes um do outro, em nosso país.

Ano de 1975.

Vladimir Herzog recebeu intimação e compareceu espontaneamente ao DOI-CODI de São Paulo para prestar depoimento. Ele entrou, de própria vontade, andando nas dependências, para cumprir o que seria um ato processual e oficial e de lá não saiu com vida. Ele caiu numa armadilha, foi submetido a brutal tortura e foi assassinado por agentes do governo ditatorial da época (os perpetradores diretos da violência). O relato oficial: Herzog cometeu suicídio no interior da cela em que estava – detalhe, ele estava de joelhos quando praticou esse ato (como assim???). A mentira, como era comum na época, mais uma vez imperou (a ação dos facilitadores).

O registro oficial desta morte, “suicídio”, persistiu até 2013, ano que foi expedido uma nova certidão de óbito. A causa da morte foi alterada de suicídio para "asfixia mecânica por enforcamento" e "lesões e maus tratos". Ou seja, homicídio. Vlado foi executado. 

Decorreram 38 anos para que a mentira, evidente e escancarada neste caso, fosse reparada por órgãos oficiais do estado brasileiro, note que durante esse percurso houve a promulgação da Constituição Federal em 1988, definida como ato inaugural da nossa democracia. Mesmo assim a mentira imperou. O sistema permaneceu intacto e operando no modo ditatorial. A letalidade policial adquiriu contornos alarmantes e é uma das características marcantes do sistema de segurança pública brasileiro.

Ano de 2025.

Infelizmente, Vlado não foi a única vítima de um sistema que extermina pessoas. Cinquenta anos após o seu assassinato por agentes do Estado brasileiro, um novo atentado à vida, agora de grandes proporções, ocorre. 

Rio de Janeiro, uma operação policial determinada pelo governador do Estado resultou em mais de 120 pessoas mortas. Cadáveres foram abandonados em uma mata e foram resgatados por moradores do bairro. Muitos deles com sinais de tortura e de execução. Os perpetradores diretos (policiais envolvidos na operação), novamente, agiram com total desenvoltura e com a garantia de que a impunidade estava – ou está – garantida. Os facilitadores (autoridades do governo estadual, por exemplo), atuam com vigor e eloquência para tentar justificar o absurdo, garantindo que houve tiroteio e que os civis mortos eram marginais (os inimigos da nação). Nenhuma manifestação do Ministério Público Estadual, a quem cabe exercer o controle externo da atividade policial. O governador garante a impunidade. Ou seja, não há controle, não há transparência, não há direitos constitucionais garantidos – típico da Doutrina de Segurança nacional. 

A mentira persiste para amparar a ação dos agentes policiais que matam. Desde o registro do fato, passando pela análise do delegado de polícia, do promotor de justiça e do poder judiciário, a versão policial prevalece, independentemente das provas obtidas. Há a opção pela morte de pessoas classificadas como inimigas da sociedade. Tal qual ocorreu com Vlado. 

Refletir sobre as circunstâncias da execução de Vladimir Herzog e da execução das pessoas no Rio de Janeiro, e especificamente nesta absurda operação policial, é um momento para refletir sobre a continuidade de um aparato estatal, gestado na ditadura, cujas características marcantes são a execução sumária e adoção da mentira (as versões da existência dos ditos tiroteios com mortes daqueles denominados “suspeitos”), presente em nosso cotidiano. Perpetradores diretos da violência e facilitadores agem com total liberdade e desenvoltura, tal qual faziam na época da ditadura.

Como falar em democracia e na prevalência do estado democrático de direito em nosso país, enquanto perdurar esta cruel realidade?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.