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Tania Rivera

Psicanalista e ensaísta brasileira. Professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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A nova desordem mundial, as eleições no Brasil e a ameaça anti-estado

A vitória de Lula traz de volta a esperança de uma sociedade mais justa e de um Estado comprometido com a população

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro bloqueiam parcialmente a rodovia Castelo Branco durante um protesto pela derrota de Bolsonaro no segundo turno da eleição presidencial, em Barueri, Brasil. 2 de novembro de 2022. (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)

Parece óbvio que as eleições brasileiras encerradas no último dia 30 de outubro exprimem uma aguda divisão da população entre dois projetos de nação, um de esquerda e outro de direita. O candidato Luiz Inácio Lula da Silva venceu, como se sabe, por uma diferença de pouco mais de 2 milhões de votos, no imenso contingente de mais de 124 milhões de eleitores, contrariando a maior parte das pesquisas, que previam uma diferença mais folgada. As manifestações de apoiadores do atual presidente a que assistimos desde então, em todas as unidades federativas do país, parecem explicitar o descontentamento de boa parte da população com tal resultado e a força política da retórica conservadora quanto aos costumes, a favor da facilitação de aquisição e porte de armas, contra a corrupção e em permanente luta contra inimigos imaginários que seriam supostamente capazes de transformar o país em uma ditadura de esquerda como Cuba e Venezuela.

Mas as coisas são mais complexas do que parecem. 

De fato, neste pleito, esteve em questão algo muito mais grave do que o salutar embate democrático entre posições distintas. O que se pôs em xeque foi a própria soberania nacional, e o regime democrático que a sustenta.  A boa notícia é que – sim! – as forças que representam a democracia e a soberania formaram maioria e terão a oportunidade, nos próximos quatro anos, de reconstituir o funcionamento institucional que parecia garantido desde fins dos anos 1980, com o fim da ditadura militar estabelecida com o apoio do governo americano em 1964. Isso é motivo de grande alegria e representa quase um milagre, frente à multimilionária estrutura de marketing baseada em fake news e ao uso explícito da máquina de estado em prol da campanha de Bolsonaro.

O atual presidente chegou a aparelhar órgãos de Estado, como a Polícia Rodoviária Federal, para cometerem crimes eleitorais. A PRF havia sido proibida pelo Supremo Tribunal Federal de fazer operações de abordagem de veículos no dia 30, mas descumpriu a ordem e dobrou o número de fiscalizações em comparação com as realizadas no dia 2 de outubro, no primeiro turno. Grande parte delas ocorreram no Nordeste, região onde Lula era franco preferido, e talvez tenham sido eficazes em impedir eleitores de chegar ao locais de votação, como parece indicar o ligeiro aumento do número de abstenções na região. Mas também houve operações gerando problemas de tráfego em estados onde Bolsonaro era favorito, como no Rio de Janeiro, provavelmente para gerar um clima de tensão e desconfiança quanto ao bom andamento do pleito, na direção aberta pela insistente – e totalmente infundada – suspeição lançada pelo presidente quanto à confiabilidade do sistema de urnas eletrônicas usado há anos no país.

O clima de arbitrariedade gerou insegurança nos apoiadores de Lula, que acompanharam com medo e tensão a apuração dos votos, apesar de sua vitória estar prevista pelas pesquisas de todos os institutos confiáveis (sim, também houve institutos de pesquisa pouco conhecidos que alimentavam nas redes sociais a ilusão de que Bolsonaro estaria à frente). A certeza, o alívio e a comemoração só vieram quando se encerrava a contagem, na noite de domingo. Na segunda-feira pela manhã, contudo, o enorme contentamento da maior parte da população com a confirmação dos valores e do funcionamento democráticos não conseguiu evitar o surgimento de certa preocupação, diante da ampla circulação da notícia de que centenas de rodovias do país estavam bloqueadas por caminhoneiros e manifestantes bolsonaristas.

Por quase 48 horas após a divulgação do resultado do pleito, o atual presidente e candidato perdedor guardou silêncio, quebrando o protocolo de pronunciamento à nação e saudação ao vencedor, enquanto os bloqueios totais ou parciais chegavam a quase 400 e impediam a passagem de pessoas e mercadorias, além de ser a ocasião para gestos nazistas (no estado de Santa Catarina, de importante colonização alemã) e ameaças a pessoas tidas como inimigos esquerdistas pelos manifestantes (como, por exemplo, estudantes de geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que se deslocavam em ônibus da instituição para uma viagem de estudos). Enquanto os chefes de estado dos Estados Unidos, da França, da América Latina e de quase todo o mundo reconheciam e saudavam a vitória de Lula com satisfação que muitas vezes ia além do tom protocolar, o atual presidente seguia a cartilha de seu ídolo Donald Trump e as instruções do estrategista de ambos, Steve Bannon – que se apressou inclusive a denunciar publicamente, pouco depois da divulgação do resultado, que teria havido fraude no pleito, assim como teria ocorrido nos EUA quando da derrota de Trump, segundo sua versão. 

Ao replicar a cena estadounidense, estaria Bolsonaro tentando forçar um ato político que levasse a um efetivo questionamento das eleições, ou mesmo a sua anulação? Ou teria ele cacife para preparar um golpe de estado, com o aval e apoio dos chefes das Forças Armadas e dos muitos militares que compõem seu governo? Ora, o próprio Bannon reconheceu recentemente, em entrevista publicada em 18 de setembro pela BBC News Brasil, que o presidente não conta com total apoio dos militares, e nem mesmo seu vice, o General da reserva Hamilton Mourão, estaria totalmente alinhado a seus propósitos. Mesmo assim, circulavam nas redes bolsonaristas mensagens que asseguravam, durante o silêncio do presidente, que se a “revolta popular” contra o resultado das eleições durasse 72 horas, ele poderia invocar um artigo da Constituição que supostamente "desconstituiria o Congresso e o STF", graças à intervenção das Forças Armadas.

Enquanto isso, Mourão telefonava ao vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e o  convidava, cortês, a visitar sua futura residência oficial. Outros membros do governo se pronunciavam tranquilamente a respeito dos resultados, enquanto o próprio Lula e sua equipe punham em marcha os preparativos para a transição entre governos. Predominava, fora dos nichos bolsonaristas, a sensação de que a atitude de Bolsonaro era absurda ou insensata, ou não passava de uma farsa dirigida a seus apoiadores mais fanáticos, visando construir uma narrativa voltada para as redes sociais e que só nestas se sustenta. A chave de compreensão da cena viria logo após o pronunciamento público do presidente, que durou apenas 2 minutos e no qual ele evitou mencionar a vitória de Lula, mas agradeceu os votos recebidos e pediu que os manifestantes desobstruíssem as estradas para garantir o direito de ir e vir da população. Bolsonaro tentara marcar para pouco antes uma reunião com os ministros do STF, mas estes teriam exigido que ela se desse após seu pronunciamento. Não se tratava de efetiva tentativa de golpe, nem de birra. Tratava-se de chantagem. 

Quando passar a faixa presidencial, no dia 1o. de janeiro de 2023, Bolsonaro perderá o foro privilegiado e responderá a mais de cinquenta inquéritos, que incluem denúncias fartamente documentadas, como a prática, quando era parlamentar, de contratação de funcionários que lhe passavam a maior parte de seu salário. Quando não mais estiver em seu alcance intervir nas Polícias, como fez explicitamente ao longo de seu mandato, talvez possa enfim seguir adiante o inquérito sobre o assassinato da ativista e deputada estadual Marielle Franco em 2018, no qual constam indícios de participação de ao menos um de seus filhos, e talvez dele próprio. Quando Lula tomar posse como Presidente do Brasil, talvez ele possa até mesmo ser responsabilizado pelas condutas criminosas frente à pandemia de Covid 19, especialmente a tentativa de compra de vacinas indianas com pagamento de um dólar de propina por dose e a negligência administrativa frente à falta de oxigênio no estado do Amazonas, que levou a mais de 60 óbitos. Uma vez derrotado, ele arreganha seu único capital político: o poder de arregimentar milhões de pessoas a realizarem atos antidemocráticos, graças à megamáquina de propaganda de Bannon nas redes sociais, cuja eficácia só se compara à da propaganda subliminar nazista – com a estranha vantagem de que nada precisa nela se ocultar, e tudo parece soar tanto mais convincente quanto menos verossímil. Com o poder que tem essa máquina de levar pessoas para a rua, Bolsonaro tenta hoje barganhar a anistia para seus crimes.

De fato, o pronunciamento do candidato na tarde de terça-feira pode ser entendido como uma incitação às manifestações. Apesar de pedir que as rodovias fossem desobstruídas (pois não se deveriam usar supostos "métodos da esquerda"), ele afirmou que as manifestações pacíficas "são bem-vindas" e fruto da "indignação" e "sentimento de injustiça" a respeito de como "se deu o processo eleitoral". Além disso, a Polícia Rodoviária Federal não só deixou de atuar para evitar e combater interrupções e bloqueios, como alguns de seus agentes aparecem auxiliando e protegendo os manifestantes, em vídeos que circulam na internet. Em uma live veiculada no dia seguinte, portanto depois do encontro com o STF, Bolsonaro volta a defender o desbloqueio das estradas, mas frisa muitas vezes que as manifestações, que "estão acontecendo por todo o Brasil", são "legítimas", e termina afirmando: "Vamos fazer o que tem que ser feito. Eu estou com vocês! Vamos continuar lutando por democracia e liberdade."As duas falas do presidente incarnam com sofisticação o que Freud chama "formação de compromisso": elas dizem uma coisa e seu contrário, ao mesmo tempo, e permitem que ele pareça estar se curvando às exigências do STF, ao mesmo tempo em que se alinha ao discurso martelado pelas redes sociais até instalar o fanatismo delirante que encheu as praças diante dos quartéis do Exército de todos os estados do país, na quarta-feira de feriado nacional, dia 2 de novembro, com pessoas embrulhadas na bandeira nacional que pediam "intervenção federal". As cenas romperam a bolha bolsonarista e deixaram atônitos os democratas, quando não causaram franco riso e chacota: em um dos muitos vídeos, manifestantes cantam emocionados o hino nacional, em volta de um enorme pneu de caminhão à guisa de totem. Em outro, um homem põe-se de repente a marchar de um lado para o outro, com gestos exagerados, empunhando a bandeira nacional. Em uma gravação, um homem anuncia a um grupo a fake news da prisão em flagrante do ministro do STF Alexandre de Moraes, e uma mulher se põe de joelhos e bate repetidamente no peito, com força, enquanto grita "Brasil, Brasil". No vídeo que mais me impressionou, uma mulher jovem anda entre os carros que passam na rua, vocifera contra inimigos imaginários e ergue uma perna como em passo de balé; repentinamente faz um spacatto no asfalto e reclina o tronco de modo a colar seu rosto no chão, correndo sério risco de ser atropelada. Outros vídeos estão longe da tragicomédia e são importantes por darem pistas de que há quem promova e financie os atos antidemocráticos, através do abastecimento de comida ou pela coação de funcionários. Em um deles, um dos motoristas das carretas que bloqueiam a rodovia diz que votou em Lula e só está ali por determinação de seu chefe.

Não é a primeira vez que Bolsonaro atiça seus apoiadores contra o STF, o congresso e a democracia brasileira. A eleição de um inimigo dileto é um dos eixos centrais de sua tática, que recaiu principalmente sobre o ministro Moraes. Na narrativa do presidente, "Xandão" não o deixa governar. Graças a essa manobra, Bolsonaro outorga para si o papel imaginário do "outsider" e do herói anti-sistema, apesar de ocupar o cargo executivo máximo do país. A criação e manutenção desta figura de líder forçadamente "marginal" funcionou com Trump e não deixa de funcionar com Bolsonaro. Mas há uma diferença fundamental entre o que ambos são capazes de fazer em seus países. No caso da frágil estrutura brasileira, tão marcada por séculos de um colonialismo barbaramente extrativista e pela violência racial da escravidão, não se trata de charme populista, mas de um claro projeto de desmonte do Estado. A propaganda vai ajudando a desmoralizar as próprias estruturas da soberania nacional, enquanto o presidente libera a transferência de cerca de 10 bilhões de dólares aos acionistas da Petrobras, a título de dividendos. Em maio deste ano, ele anunciava abertamente uma reunião com o homem mais rico do mundo, Elon Musk, para tratar de mineração na Amazônia. Suas falas podem parecer trapalhadas ou discursos absurdos ou paranóicos, mas não nos enganemos: são as exigências impostas a seu fantoche por um punhado de megaempresários que não estão mais dispostos a lidar nem mesmo com o Estado Mínimo neoliberal. Eles querem total liberdade para a exploração predatória e destruição de qualquer ideia de responsabilidade social e ambiental.

Em contraponto, brilha a vitoriosa frente política armada por Lula para levar o país de volta a marcos éticos do fazer político, em defesa da democracia e da soberania nacional. Que não se acredite ver nela, contudo, a ponta de lança da esquerda do continente. A primeira vitória do ex-sindicalista, em 2002, só foi possível pela aliança com setores do Centro que pautou todos seus mandatos, bem como os de Dilma Roussef, e impediu a implementação de medidas fundamentais, como a Reforma Agrária e a taxação de grandes fortunas e dividendos de empresas (desde 1995, o Brasil é um dos únicos países do mundo a não cobrar impostos sobre lucros, ao lado da Letônia e da Estônia). A frente ampla com a qual Lula comandará o país a partir de 1o. de janeiro de 2023 conta, ademais, com a expressiva participação dos neoliberais de centro-direita que foram seus principais adversários políticos antes que chegasse por aqui a máquina de Steve Bannon, franqueada pelo golpe parlamentar-midiático que retirou Roussef do poder em 2016, com o apoio do Judiciário e de uma engenhosa estratégia de guerra híbrida (ou lawfare) comandada pela justiça estadounidense, em uma imensa farsa que levou Lula injustamente à prisão e o impediu de concorrer às eleições de 2018.Frente à brutalidade com a qual o grupo de Trump e Musk vai ganhando terreno na América Latina e em todo o mundo, a preocupação do partido dos Trabalhadores com políticas sociais e de distribuição de renda toma ares verdadeiramente épicos. Boa parte da população brasileira elegeu Lula com a firme convicção de que não se pode aceitar que o lugar simbólico do chefe de estado seja reduzido à canalhice com a qual Bolsonaro negou a pandemia de Covid-19 e impediu que se armasse uma gestão responsável e eficiente da mesma. Muitos recusam, com força, não apenas a falta de decoro com a qual o presidente chegou a ridicularizar em suas lives os doentes, imitando uma crise de falta de ar, mas sobretudo o uso genocida da máquina pública para impedir a boa gestão que teria certamente evitado parte dos óbitos ocorridos no país – cujo número exato se desconhece, pois o governo dificultou inclusive a testagem e contabilização dos mortos pela doença, mas estima-se significativamente maior que o oficial, que conta quase 700 mil vítimas.

Diante da agressividade corriqueira nas falas do atual presidente, nas quais a violência racial e de gênero nunca se escondem, a vitória de Lula traz de volta a esperança de uma sociedade mais justa e de um Estado comprometido com a população. E isso chega a ser comovente, no atual contexto. Uma cena a que assisti logo após votar, no último dia 30 de outubro, mostra a potência de sua convocação e o alcance de sua mensagem, a contrapelo da guerra da propaganda suicida de extrema-direita a que tantos aderem nas redes sociais. Um homem entra na seção eleitoral segurando uma pequena trouxa na qual talvez estejam todos seus pertences. Suas roupas estão rasgadas e ele está sujo; talvez seja um sem-teto. Ele retira do embrulho um pequeno saco plástico. Nele está a carteira de identidade que lhe permitirá votar. E também um adesivo com o número 13, da chapa de Luiz Inácio Lula da Silva.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.