A novilíngua do mal
Defender a palavra “justiça” de sua corrupção sistemática é, talvez, o ato mais radical de defesa da própria justiça
“A linguagem política — e com variações isto é verdade para toda a linguagem política — é projetada para fazer com que as mentiras soem verdadeiras e o assassinato, respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro vento.
”George Orwell, “A Política e a Língua Inglesa”
Antes que o primeiro tiro seja disparado, antes que o primeiro corpo caia, uma outra violência, mais sutil e talvez mais duradoura, já se instalou. É a violência semântica, o corrompimento metódico das palavras que usamos para nomear o mundo e, consequentemente, para compreendê-lo. Aniquilar um povo, subjugar uma nação ou erradicar uma ideia começa sempre por torcer, esvaziar e rearmar o dicionário. Não se trata de um dano colateral, um subproduto infeliz da realpolitik. É um projeto. Um epistemocídio calculado, a morte deliberada do conhecimento compartilhado, para que em seu lugar reine o jargão do poder. E o que vemos hoje, em palcos tão distintos quanto a Ásia Ocidental, a diplomacia global e o nosso conturbado Brasil, não são crises isoladas, mas manifestações de uma mesma patologia linguística. O terrorismo de Estado israelense, a doutrina do excepcionalismo estadunidense e o fascismo residual que ainda assombra Brasília, cada um à sua maneira, operam a partir de uma matriz comum: a criação de um “estado de exceção” semântico. Nesse território semântico conflagrado, conceitos que um dia foram universais, como defesa, liberdade e patriotismo são sequestrados, esvaziados de seu conteúdo ético e transformados em armas para justificar a dominação, a exclusão e, em última análise, a barbárie.
Para navegar por este campo minado, onde as palavras significam o oposto do que dizem, precisamos de referências. George Orwell e sua “Novilíngua” nos alertar sobre a linguagem que aniquila o pensamento. Hannah Arendt, ao observar o burocrata nazista Adolf Eichmann, nos legou o conceito da “banalidade do mal”, a terrível capacidade humana de cometer atrocidades a partir da irreflexão, da simples obediência a uma lógica perversa. E, talvez mais crucialmente, o jurista alemão Carl Schmitt, cuja obra assombra o século XX, nos ensinou que a essência do político, em sua forma mais extrema, reside na distinção fundamental entre “amigo” e “inimigo”. É essa gramática sombria que hoje se desdobra em várias frentes.
O teatro de operações semântico em Gaza
Observemos com atenção o léxico empregado para descrever a tragédia palestina. A palavra-chave, repetida como um mantra por porta-vozes militares e chancelarias ocidentais, é “defesa”. O Estado de Israel, nos garantem, exerce seu “direito à defesa”. Mas que defesa é essa que se manifesta como uma ofensiva militar contínua, um cerco desumano que dura décadas e uma política de punição coletiva que, segundo dados da própria ONU, vitima civis em proporções assustadoras? A palavra, aqui, não descreve a realidade; ela a inverte. O agredido histórico, o povo despojado de sua terra e de seus direitos, é transmutado em agressor perpétuo, enquanto o Estado que detém um dos mais poderosos aparatos militares do mundo se posiciona, eternamente, como vítima.
Acompanhando “defesa”, vem sua parceira inseparável: “terrorismo”. Ao assistir a entrevista da deputada Federal Luiziane Lins, do PT do Ceará, narrando sua experiência após o sequestro dos aitivstas da Global Sumud Flotilla percebi com ainda mais clareza deque o termo é aplicado com uma seletividade cirúrgica para deslegitimar qualquer forma de resistência palestina, seja ela armada ou não. Enquanto isso, as ações do Estado, os bombardeios a campos de refugiados, escolas e hospitais, são blindadas sob o rótulo asséptico de “operações de segurança” ou “neutralização de alvos”. O resultado é a criação de duas categorias de mortos: os deles, vítimas do “terror”, e os nossos, “danos colaterais” (ou nem isso). Por fim, a manobra retórica suprema: a fusão deliberada entre o Estado de Israel e o povo judeu, de modo que qualquer crítica minimamente articulada à política de apartheid (termo usado por organizações como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch) seja imediatamente fulminada pela acusação de “antissemitismo”. É a palavra como escudo moral para ações imorais.
“Guerra é Paz”. A ofensiva é defesa. Que o diga Maria Conia, “ganhadora” do Nobel da Paz por pedir que os EUA invadissem militarmente seu país e criticada por ninguém menos que Adolfo Pérez Esquivel, (esse sim) Nobel da Paz em 1980. A punição coletiva é segurança. A burocracia militar que, em Tel Aviv, calcula em planilhas o número de crianças e mulheres que podem “colateralmente” morrer para “neutralizar” um único militante, encarna com perfeição a banalidade do mal de Arendt. Com dificuldade de absorver a ideia de que o ser humano é capaz de tamanha atrocidade, tenho dúvidas de que não sejam são monstros sádicos. Quem sabe, apenas funcionários operando dentro de uma lógica linguística que já os absolveu de antemão.
O glossário da hegemonia estadunidense
Se em Gaza a Novilíngua justifica a ocupação, em Washington ela lubrifica a engrenagem do império. O conceito de “excepcionalismo americano” é o pilar desta construção. Ele postula que os Estados Unidos não são apenas mais uma nação, mas um farol moral, uma “cidade na colina” com um destino manifesto de guiar o mundo. A partir dessa premissa, a “liberdade” deixa de ser um direito universal e se converte em uma mercadoria ideológica de exportação, um conveniente casus belli para justificar intervenções, sanções e mudanças de regime que, curiosamente, quase sempre coincidem com os interesses geopolíticos e econômicos do Departamento de Estado. A liberdade dos outros, ao que parece, só é válida quando se alinha à hegemonia de Washington. Que o digam as universidades.
Para sustentar essa arquitetura, um significante-mestre se revela indispensável: “segurança nacional”. A elasticidade deste conceito é praticamente infinita. Ele se expande para abarcar não apenas ameaças militares, mas disputas comerciais com a China, políticas ambientais de nações amazônicas ou a eleição de um governo de esquerda na América Latina. Qualquer coisa que desafie a ordem unipolar pode ser enquadrada como uma ameaça à “segurança nacional” estadunidense, autorizando a suspensão da soberania alheia. E aqui reside a contradição performática mais gritante: a soberania dos EUA é tratada como sagrada, absoluta e inquestionável, enquanto a soberania de todos os outros países é relativa, condicional e sujeita a revisão. Para isso, vale inclusive explodir corpos de pescadores venezuelanos em suas pequenas barcas à beira daquele país, alegando se tratarem de narcotraficantes e comemorando como se estivessem destruindo um porta-aviões inimigo.
Este não é um mero discurso que reflete o poder; ele o constitui, como disse Michel Foucault. Ele cria um regime de verdade onde a dominação é normalizada e a hierarquia global, naturalizada. É a teoria do estado de exceção aplicada em escala planetária: o sistema internacional opera sob a premissa de que os EUA podem, a qualquer momento e a seu critério, suspender as regras do jogo para todos, menos para si mesmos, colocando nações inteiras numa zona de anomia onde o direito internacional se torna letra morta.
A dialética do medo no Brasil
Descendo ao nosso inferno particular, encontramos a mesma lógica, ainda que com um verniz mais tosco e estridente. O léxico do bolsonarismo sequestrou significantes de altíssima carga afetiva como “patriotismo”, “Deus” e “família” não para unir a nação, mas para dividi-la. É verdade que não se trata de uma novidade. O Integralismo de Plínio Salgado já havia importado tais valores fascistas muito antes. Tanto antes, quanto depois do Instagram e do X, o “verdadeiro patriota”, o “cidadão de bem”, não é definido por suas virtudes cívicas, mas por sua oposição raivosa a um inimigo interno, um outro fabricado para ser odiado.
E quem são esses inimigos? São espectros, significantes vazios que podem ser preenchidos com qualquer coisa que ameace a “ordem” imaginada por eles: “comunismo”, “ideologia de gênero”, “globalismo”. Termos que perderam qualquer lastro com a realidade e funcionam como meras senhas para identificar e perseguir os indesejados: a ciência, a imprensa crítica, as universidades, os artistas, a Lei Rouanet, os defensores de direitos de minorias. A universidade federal não é um centro de saber; é um antro de “balbúrdia” e “doutrinação comunista”. Ela é “inimiga do povo”.
Nesse pântano semântico, a “liberdade de expressão” sofre sua mais cínica inversão: torna-se um salvo-conduto para discursos de ódio, para a apologia da tortura e para ataques diretos aos pilares da democracia, como o vimos nos eventos que culminaram no 8 de janeiro. A liberdade é invocada para destruir as condições materiais e institucionais da própria liberdade plural. A política, para essa corrente, não é a arte do dissenso e da negociação, mas a aplicação pura e simples da distinção “amigo-inimigo”. Não há adversários a serem persuadidos, mas inimigos a serem silenciados, humilhados, eliminados simbólica ou, se possível, politicamente. É o que Umberto Eco chamou de “Ur-Fascismo”, ou fascismo eterno: o culto à tradição, a rejeição ao pensamento crítico, o apelo às classes médias frustradas e, acima de tudo, a obsessão com um complô e o medo da diferença.
A Morte da Política
Eis o ponto de confluência, a técnica que une esses três exemplos sombrios. A criação linguística de um “outro” desumanizado que pode, e deve ser combatido fora das regras morais e legais que aplicamos aos nossos “iguais”. Seja o “terrorista” palestino, cuja vida vale menos que a de um soldado; seja o “Estado-pária” que desafia a ordem estadunidense e precisa ser “libertado” de si mesmo; seja o “comunista” brasileiro, o inimigo interno que precisa ser extirpado para que a “nação” sobreviva. A função é idêntica: designar um grupo como uma ameaça existencial ao “nós” e, com isso, justificar qualquer violência perpetrada contra ele.
Este processo não é político; ele é a morte da política como o encontro plural de diferentes na arena pública para decidir sobre o mundo comum. O que temos em seu lugar é a entronização da lógica schmittiana, que vê a guerra não como um desvio, mas como o horizonte permanente e definidor da existência coletiva. A tortura das palavras é o prelúdio da suspensão dos direitos. Ela fabrica a justificativa para que o estado de exceção se torne a regra.
Diante disso, a constatação não basta. A tarefa mais urgente de nosso tempo não é apenas militar, diplomática ou eleitoral. Ela é, também, filológica. Precisamos nos tornar, todos nós, “guardiões do dicionário”, defensores intransigentes do sentido das palavras contra seus sequestradores. Urge promover uma espécie de alfabetização política para o século XXI em escolas, universidades e, sim, na grande mídia. Uma educação que ensine o cidadão a desconstruir o discurso do poder, a identificar as inversões semânticas, a farejar a Novilíngua no ar e a reconhecer quando a linguagem está sendo usada não para comunicar, mas para dominar.
A luta pelos direitos humanos, hoje mais do que nunca, começa com a luta pela integridade das palavras que os nomeiam. Defender a palavra “justiça” de sua corrupção sistemática é, talvez, o ato mais radical de defesa da própria justiça.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

