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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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A obsolescência do humano

O filósofo alemão Günther Anders mostrou que entre bombas e algoritmos perdemos densidade humana, transformando realidades vividas em simulacros digitais

Ao longo dos anos, me aproximei do pensamento de Günther Anders através de traduções não oficiais em inglês, trabalhos de estudiosos apaixonados que se dedicaram a tornar acessível a obra do filósofo alemão fora do universo restrito da língua germânica. Li Anders em cópias digitais mal diagramadas, muitas vezes com frases tortuosas, mas o desconforto da leitura era compensado pela revelação das ideias. E agora, com a previsão para dezembro de 2025 da primeira tradução integral em inglês de A obsolescência do humano, esse reduto de esquecimento poderá ser revertido. 

Não se trata de modismo editorial, mas de um aporte vigoroso: Anders retorna ao centro do debate global sobre tecnologia, democracia e destino humano. Confrontá-lo neste tempo, atravessado por algoritmos e crises ecológicas, é imperativo. Seu pensamento pode ser fio condutor para resgatar o humano como promessa e responsabilidade, não apenas como engrenagem descartável.

A fenda que não fecha

O coração da reflexão de Anders está naquilo que chamou de “fenda prometéica”: o abismo entre o que podemos produzir e o que conseguimos imaginar. Somos capazes de lançar bombas nucleares, mas incapazes de prever, no íntimo, a dimensão do horror que se segue. Inventamos tecnologias capazes de moldar o clima, manipular emoções e gerar conteúdos infinitos, mas não possuímos imagens mentais adequadas para abarcar as consequências disso tudo. É como se tivéssemos em mãos um foguete interplanetário e, ao mesmo tempo, mapas de navegação ainda medievais. A consequência é devastadora: fabricamos futuros que a mente humana não alcança, e esse atraso da imaginação moral se converte em permissividade perigosa.

A vergonha diante das máquinas

Desse hiato nasce o que Anders nomeou de “vergonha prometéica”: a sensação de sermos ultrapassados pela perfeição das coisas que criamos. Frente à exatidão de um algoritmo, à velocidade de um robô, ao brilho de uma máquina que não erra, sentimos vergonha de nosso corpo frágil, de nossas falhas, da lentidão com que pensamos ou nos recuperamos. 

Essa vergonha não é apenas psicológica; ela se converte em comportamento coletivo. Passamos a valorizar-nos não pelo que somos, mas pelo quanto nos aproximamos da lógica das máquinas. Um trabalhador compara-se a um software; um estudante mede-se contra a capacidade de busca de uma plataforma. É como se estivéssemos sempre na posição do aluno que, diante de um colega prodígio, rebaixa-se e aceita ser invisível.

O mundo como fantasma

Em outro momento central de sua obra, Gunther Anders analisa a sociedade das imagens e fala do “mundo como fantasma e como matriz”. O conceito é preciso: a imagem técnica, projetada em tela, substitui a experiência direta. O “fantasma” é o que se mostra — brilhante, editado, ampliado. A “matriz” é o molde que dita como passamos a enxergar tudo. 

Pense no cotidiano das redes sociais: um pôr do sol vale menos por ser vivido e mais por ser fotografado e exibido. É verdade ou não? Você mesmo não assistiu um show de quem é fã há muitos anos Através da lente do telefone celular, fotografando ou gravando vídeo? 

A vida real, com seus silêncios, hesitações e imperfeições, passa a ser apenas coadjuvante de uma narrativa digital. O resultado é uma perda de densidade existencial. Quando a imagem se torna a referência maior, o que vivemos diretamente se rebaixa a um papel secundário, quase um ensaio do espetáculo que importa.

A cegueira apocalíptica

Outro conceito-chave de Anders é a “cegueira apocalíptica”. Sabemos dos perigos — nucleares, climáticos, digitais —, mas não os sentimos como urgência real. É como se a consciência racional dissesse “isso é grave”, enquanto a imaginação emocional cochicha “isso não é comigo”. 

Essa dissociação explica a letargia social diante de catástrofes anunciadas. Sabemos do aquecimento global, das ameaças nucleares, da erosão da privacidade, mas reagimos como quem adia uma consulta médica: sabemos que é necessário, mas deixamos para depois. Anders percebeu isso já nos anos 1950, olhando para Hiroshima e Auschwitz. 

O que diria hoje, ao ver bilhões de pessoas entregues diariamente ao piloto automático das plataformas digitais? Ver hoje que casa se transformou a cara mais esfomeada do mundo? É que os Drones no leste europeu matam mais que soldados em combate?

Entre o exílio e a crítica ao século

Nascido Günther Stern, em 1902, em Breslau, então parte do Império Alemão, Anders foi aluno de Martin Heidegger e Edmund Husserl, antes de se exilar nos Estados Unidos fugindo do nazismo. Não foi apenas filósofo de gabinete. Trabalhou em fábricas, viveu os dilemas da diáspora, mergulhou no mundo das máquinas como operário para entender de dentro aquilo que depois analisaria em sua obra. 

Retornou à Europa com olhar desconfiado sobre o mito do progresso. Anders não era teórico frio; foi crítico da corrida armamentista, escreveu cartas abertas a Oppenheimer, denunciou as ilusões da Guerra Fria. Morreu em 1992, mas seu pensamento sobrevive como se fosse escrito para este século: sempre mais atual do que a própria atualidade. Ele entendeu muito jovem que pensar dói, que as ideias nascem na forma de partos. E encarou seus desafios.

A pergunta que se impõe é: o que significa falar de “obsolescência do humano” na era da inteligência artificial? 

Significa, antes de tudo, entender que não se trata de uma mera disputa de empregos entre homens e máquinas. Trata-se de algo mais radical: a substituição do exercício humano da imaginação, da memória e do juízo por sistemas que operam sem transparência e sem limites. 

Se delegamos às máquinas a escolha das notícias que lemos, dos amigos com quem conversamos, das músicas que ouvimos, corremos o risco de atrofiar nossa própria musculatura moral e intelectual. A obsolescência não é metáfora, é um risco cotidiano. A meu ver esse é um precioso achado que encontrei nas ideias de Ander: A obsolescência deixou de ser figura de linguagem: é uma ameaça diária, concreta, infiltrada em nossas rotinas.

Relevância brasileira e latino-americana

Trazer Anders para o Brasil e a América Latina é vital. Em sociedades onde desigualdades estruturais já marginalizam milhões, a automação e a cultura da plataforma não chegam apenas como conveniência: chegam como filtro que determina quem aparece e quem desaparece. É aqui, onde a educação pública luta por sobrevivência e a comunicação se concentra em poucos conglomerados, que a advertência de Anders ganha corpo: precisamos reconstituir o humano como valor, antes que sejamos reduzidos a dados numa planilha transnacional.

Três gestos práticos para uma ação urgente

Para não deixar a filosofia pairar no abstrato, Anders propõe que nossa responsabilidade é prática. Se ele vivesse hoje, penso que endossaria estes três gestos como “virada de chave” para iniciar a mudança:

Avaliações de impacto tecnológico obrigatórias. Não se trata de relatórios cheios de jargões, mas de algo próximo do que já conhecemos no licenciamento ambiental: antes de lançar uma tecnologia, medir riscos sociais, psicológicos e políticos. Imagine um aplicativo de reconhecimento facial: antes de ser instalado em escolas ou estádios, seria preciso provar que não discrimina, que não alimenta preconceitos e que não compromete liberdades civis.

Observatórios democráticos de riscos. Em vez de deixar governos ou corporações decidirem sozinhos, criar espaços onde cidadãos, cientistas e jornalistas acompanhem em tempo real os efeitos das tecnologias. Seria como uma mistura de Procon e conselho de ética, mas voltado para a inteligência artificial, para a automação e para o uso de dados pessoais. Esses observatórios funcionariam como alertas antecipados, antes que problemas se tornem tragédias.

Alfabetização da imaginação consequencial. Assim como ensinamos crianças a ler e escrever, precisamos ensiná-las a imaginar cenários. Uma aula de matemática pode incluir exercícios de projeção: “e se todos consumirem água desta forma?”; uma aula de história pode propor: “e se armas nucleares forem usadas hoje?”. São exercícios que cultivam a imaginação moral, tão necessária quanto a tabuada ou a gramática.

Recuperar a imaginação

Em um mundo que sacrifica o essencial em nome do urgente, Anders nos convoca a religar escalas. O jornalismo, a política e a educação têm o dever de recuperar a imaginação moral como infraestrutura do futuro. 

E cada leitor tem a tarefa de responder à pergunta incômoda: a que distância está o que você faz daquilo que você consegue imaginar? Se a resposta for “muito longe”, então a obsolescência não é teoria, é biografia. Anders nos obriga a encarar essa verdade: o humano só continuará sendo humano se recusar a se medir pelo padrão da máquina — e se ousar colocar imaginação e responsabilidade ética novamente no centro de tudo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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