A ONU e o mundo silenciado pelos EUA
A Assembleia Geral das Nações Unidas é, desde 1945, o fórum universal onde cada Estado-membro, grande ou pequeno, tem o mesmo direito de voz
A Assembleia Geral das Nações Unidas é, desde 1945, o fórum universal onde cada Estado-membro, grande ou pequeno, tem o mesmo direito de voz. É o espaço por excelência da diplomacia multilateral: aqui se constroem consensos, se denunciam injustiças e se busca preservar uma ordem internacional mínima diante de crises sucessivas. Não é à toa que, todos os anos, em setembro, os olhos do planeta se voltam para Nova York, quando chefes de Estado e de governo se reúnem para debater a situação do mundo.
Em 2025, esse ritual foi gravemente abalado. Os Estados Unidos, anfitriões da ONU, decidiram negar ou revogar vistos de autoridades da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), justamente aquelas que, por décadas, representaram o povo palestino no campo diplomático. Essa manobra, de legalidade duvidosa, equivale a um veto unilateral à presença palestina no único espaço verdadeiramente multilateral que existe.
A conduta dos Estados Unidos viola frontalmente a Lei de Sede de 1947, acordo que condicionou a instalação da ONU em Nova York à garantia de acesso pleno e irrestrito a todos os representantes dos Estados-membros e entidades observadoras, independentemente de relações diplomáticas bilaterais. Ao negar vistos à liderança palestina, Washington transforma em arma política aquilo que deveria ser uma salvaguarda do multilateralismo. Não se trata de detalhe burocrático, mas de um ataque direto à igualdade soberana dos Estados, princípio fundador da ONU.
Diante desse absurdo, seria natural que o governo brasileiro se pronunciasse com clareza, em coerência com sua tradição diplomática de defesa do direito internacional e da autodeterminação dos povos. Da mesma forma, espera-se que China e Rússia, potências com assento permanente no Conselho de Segurança e voz ativa contra o unilateralismo, não permaneçam caladas diante da usurpação norte-americana.
Ao agir assim, os EUA desrespeitam não apenas os palestinos, mas toda a comunidade internacional, pois abrem um precedente perigoso: quem controla a sede da ONU poderia escolher quem participa e quem é silenciado. É a lógica do poder impondo-se sobre a lógica do direito. Mais do que nunca, está em jogo a credibilidade das Nações Unidas como espaço universal de diálogo.
O gesto inscreve-se no padrão errático do governo Trump 2.0. Em vez de levar seu secretário de Estado ou embaixadores experientes para articular posições no maior fórum internacional do planeta, Trump escolheu viajar ladeado por empresários do setor imobiliário, como se a ONU fosse mais uma de suas convenções de negócios. Não é Marco Rubio, senador e rival dentro do Partido Republicano, quem o acompanha, mas sim nomes que orbitam sua bolha pessoal e financeira. O recado é claro: desprezo pelo multilateralismo e captura privada de um espaço público global.
A decisão norte-americana não passou despercebida. Países europeus, como a França, lembraram que a Assembleia Geral não pode sofrer restrições de acesso, enquanto a União Europeia pediu a reversão imediata da medida, evocando obrigações legais assumidas por Washington no acordo de sede da ONU. A Turquia qualificou o veto como um golpe contra a diplomacia e reafirmou que “o mundo é maior que cinco”, numa referência direta ao privilégio das potências no Conselho de Segurança. Ainda assim, esse coro de críticas contrasta com o silêncio cúmplice de outras capitais ocidentais, mais preocupadas em preservar relações com Washington do que em defender os princípios fundadores da ONU.
Israel, por sua vez, aplaudiu a iniciativa de Trump. Para o governo Netanyahu, barrar a ANP é funcional: diminui a visibilidade da solução de dois Estados e desloca o debate para o campo da segurança e do terrorismo, onde o Hamas ocupa o centro da cena. Assim, o gesto norte-americano acaba sendo duplamente perverso — enfraquece a ala diplomática palestina e reforça a narrativa de confronto permanente.
Na contramão desse isolamento, o Brasil terá papel de destaque. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva abrirá a Assembleia Geral — privilégio histórico reservado ao país desde a fundação da ONU. O visto de Lula foi concedido sem restrições, mas não deixa de soar paradoxal que o anfitrião tente ditar quem pode ou não entrar na sede da ONU, minando a própria razão de ser da instituição.
Para Lula, a tribuna da ONU será mais que uma formalidade: será a oportunidade de reafirmar a defesa da soberania dos povos, da paz e do multilateralismo. O Brasil, que em julho recebeu a Cúpula do BRICS+ no Rio de Janeiro e, em novembro de 2025, sediará a COP-30 em Belém, emerge como voz de equilíbrio num mundo fraturado por guerras, tarifas e crises climáticas. Ao abrir a Assembleia, Lula não falará apenas em nome do Brasil, mas em nome de um Sul Global que exige ser ouvido.
Se o Brasil aspira a desempenhar um papel de liderança global — seja na COP-30 em Belém, seja no seio dos BRICS ampliados — não pode se calar diante da violação da Lei de Sede de 1947. A omissão equivaleria a aceitar que o direito internacional seja rebaixado a mero ornamento diante da força bruta. O Itamaraty, guardião histórico da legalidade multilateral, precisa agir com firmeza e denunciar esse abuso, ao lado de outras potências dispostas a preservar a credibilidade da ONU. O silêncio, neste momento, seria cúmplice.
A reunião de 2025 da ONU entrará para a história não apenas pelo que será dito nos discursos, mas pelo que foi silenciado de forma arbitrária. Se a voz palestina foi cerceada, caberá a líderes como Lula resgatar o espírito da ONU como um espaço plural, igualitário e independente das vontades imperiais de Washington.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

