A ortodoxia e o Google Maps
Não há racionalidade que preveja as implicações de tantos fatores agindo juntos em uma sociedade gigantesca como a brasileira, mas o fato é que as decisões tomadas hoje vão moldar quem nós seremos amanhã
Estava eu no carro com o meu avô quando ele disse algo que me deixou encantado: "A menor distância entre dois pontos é uma reta. Não sei por que ir por esse caminho cheio de curvas."
Foi o maior resumo da geração do meu avô que eu ouvi até então. Em duas frases, estava posto todo o pensamento ortodoxo, cartesiano, neoclássico e puramente racional: o pensamento da modernidade do século XX. Não consegui deixar de pensar em como ter nascido depois da Guerra Fria me fez diferente do meu avô.
O Google Maps me mostra exatamente o que ele queria: o menor caminho entre dois pontos diferentes da cidade. Eu, no entanto, prefiro usar o Waze, um aplicativo de celular que te indica qual o melhor caminho para chegar logo no ponto de chegada. Isso acontece porque ele se conecta com os usuários, traçando rotas que levam em consideração o trânsito no momento. Desse modo, o Waze me dá o caminho mais rápido, e não necessariamente o mais curto. Ele insere algo que revolucionou os aparelhos de GPS: o mundo real.
Foi essa mesma revolução que a heterodoxia trouxe ao pensamento econômico e filosófico. Depois que nós passamos a levar o mundo real em consideração, abstraí-lo ficou muito mais difícil. Não há racionalidade perfeita que consiga explicar o quão complexo é o nosso mundo, inclusive porque a raça humana é composta de atributos talvez ainda mais interessantes que a racionalidade.
Mas não pude deixar de notar que essa maneira mais humanizada de ver o mundo é uma característica típica da minha geração. Pus a me questionar: será então que a ortodoxia é apenas uma visão decorrente de um contexto histórico? Ou então há quem defenda a ortodoxia e a receita neoliberal apenas por má-fé?
Cheguei à conclusão de que há dos dois.
O contexto que eu usei é o de sempre, o mais falado em 2015: a crise econômica no Brasil. O Ministério da Fazenda foi dado a um economista tipicamente ortodoxo e racional.
Por lógica sua, o que foi feito foi cortar gastos públicos com o objetivo de equilibrar as contas do governo. O resultado: já há índices de que a política contracionista vai fazer com que a renda diminua, minimizando os impostos recolhidos pelo governo, e assim diminuindo a chance de se obter um superávit fiscal.
Outra lógica tão brilhante foi a de aumento dos juros, com o objetivo de frear a inflação. Um ortodoxo diria que a inflação só pode vir de uma oferta muito grande de moeda e crédito, causando uma demanda por bens por parte dos trabalhadores que não poderia ser suprida, o que faria com que os preços se elevassem. Entretanto, a estagflação atual nos diz que o excesso de demanda não é a causa do aumento de preços, pois senão haveria crescimento. Há outros fatores na conta, como o inercial e o relativo às crises hídrica e energética. Com o aumento dos juros, o remédio é dado para a doença errada, fazendo com que o consumo e o investimento sejam estrangulados, agravando ainda mais a situação.
Mas há que se dizer que não é apenas por divergência ideológica e teórica que políticas econômicas neoliberais são defendidas. Os rentistas, os mesmos que se beneficiam das altas taxas de juros, podem muito bem ganhar muito dinheiro com um cenário econômico péssimo. São pessoas que não se importam com o crescimento ou o desenvolvimento do país, desde que obtenham seu quinhão. Dos especuladores financeiros, nem se fala. Essas pessoas têm os seus interesses muito bem assegurados tanto no Congresso como em outras áreas de disputa de poder na sociedade. São pessoas de carne e osso, não esqueçamos.
O modelo de união das diversas camadas da sociedade ficou na década passada. Talvez Lula nem consiga mais encontrar o empresariado produtivo que se aliou aos trabalhadores no seu segundo mandato para alavancar o crescimento econômico. Com a sociedade apartada, são os interesses dos mais fortes que estão prevalecendo. Os ajustes que vêm acontecendo na economia, ao contrário do que os equilibristas poderiam dizer, vão deixar marcas na sociedade. Haverá queda na renda das famílias, destruição do pequeno capital, concentração de riqueza em grandes empresas, um aumento do "normal" da taxa Selic, precarização dos direitos trabalhistas, entre outras coisas. Outrossim, a esquerda seguirá fragilizada e sem base para se amparar. Não descobriu ainda que não há como se aliar só com as classes altas, sem levar em conta os trabalhadores que a elegeram. Enquanto isso, no Congresso, o conservadorismo toma espaço todos os dias.
O cenário é complexo e o futuro é incerto. Não há racionalidade que preveja as implicações de tantos fatores agindo juntos em uma sociedade gigantesca como a brasileira, mas o fato é que as decisões tomadas hoje vão moldar quem nós seremos amanhã.
Talvez um recado simples que os heterodoxos pós-modernos gostariam de dizer aos ortodoxos, sejam os rentistas ou os avós, é uma máxima bastante simples. "Não é bem assim." Porque dificilmente nós conseguimos dirigir em linha reta na cidade. E eu prefiro não pegar trânsito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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