A outra balança: sensibilidade, direito e mandato fraterno
O Papa Francisco dirigiu uma carta a penalistas com um forte apelo: frear a lógica punitiva, priorizar a dignidade humana e combater a “cultura do descarte”
Na arquitetura dos gestos que deixam marcas, há ocasiões em que uma carta se mostra mais eloquente que um tratado. Foi o caso da mensagem que, há dois anos, o Santo Padre dirigiu à Associação de Professores de Direito Penal. Aquela missiva não foi uma simples formalidade epistolar, mas uma verdadeira exortação moral: um apelo vibrante à consciência de todos que compartilham a vocação pela justiça e o compromisso inabalável com a dignidade humana. Suas linhas entrelaçavam palavras de gratidão, advertências, esperanças e princípios que, hoje mais do que nunca, permanecem iluminados e desafiadores.
Ele nos alertava, em um dos trechos mais marcantes da carta, sobre a altíssima responsabilidade que recai sobre nossos ombros — tanto da Academia quanto da Magistratura. Enfatizava, com clareza pastoral, que essa missão exige não apenas sólida formação técnica, mas sobretudo uma paixão ardente pela justiça e plena consciência do dever moral que nos foi confiado.
Francisco nos convidava a contemplar, antes de tudo, a injustiça — como modo de acessar o sofrimento das pessoas envolvidas no conflito penal — e a buscar soluções que não aprofundem a exclusão nem o delito no interior do sistema.
Nessa mesma linha, advertia sobre certos desvios que o direito penal contemporâneo vem assumindo. Já havia expressado isso em 2014, em discurso ao Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, em Roma. Ali, sustentava que o direito penal não soube se blindar contra as ameaças que pairam sobre as democracias em nossa época — e, a partir disso, fazia um apelo urgente contra a irracionalidade punitiva.
Observava com preocupação lúcida aspectos alarmantes dos sistemas penais da região, e do nosso país em particular. Mencionava, entre outros, o uso arbitrário da prisão preventiva, a imposição da pena de prisão perpétua, o encarceramento em massa, o superlotamento das penitenciárias, as práticas de tortura nas prisões e a repetição de abusos e arbitrariedades por parte das forças de segurança.
Não foi menos enfática sua crítica — concreta e corajosa — à criminalização da manifestação social, fenômeno que frequentemente resulta na violação intolerável das garantias fundamentais consagradas em nossas leis.
Tudo isso se inscreve, sem dúvida, no magistério de Francisco em sua dimensão mais genuinamente apostólica. Um magistério encarnado por um gigante espiritual. É, de fato, revelador — embora surpreendente — que um Pontífice tenha se dedicado com tanta intensidade às questões penais. Mas essa atenção responde a uma lógica perfeitamente coerente: a vontade de combater o que ele mesmo definiu como "cultura do descarte" — essa forma contemporânea de exclusão que transforma os vulneráveis em humanidade descartável.
Francisco ergueu, assim, um verdadeiro programa ético diante da crise global contemporânea. Abriu caminhos para interpelar sociedades marcadas por desigualdades estruturais, sempre tomando o partido dos fracos, dos oprimidos. Sua atenção voltou-se, sem desvios, para os vulnerados e violentados pelo sistema de justiça penal — e para a necessidade de traçar limites claros, firmes e intransigentes.
Defendeu, particularmente, a redução da arbitrariedade e da severidade na aplicação de penas, com atenção especial à abolição da pena de morte e à profunda revisão do sistema prisional.
E, como corolário desse compromisso inabalável, apenas 48 horas antes de sua morte — numa sexta-feira, símbolo do sacrifício redentor —, em um gesto de infinita misericórdia e profunda espiritualidade, voltou a lavar os pés de um preso. Com esse ato, selou um compromisso que, mais que religioso, assume estatura de afirmação filosófico-jurídica. Um paradigma político e social que interpela, de forma decisiva, nosso tempo.
Mas se me é permitido escolher, fico com o gesto inaugural de seu pontificado — ainda mais do que com o último. Pois o que fez Francisco ao iniciar sua missão? Deixou para trás os mármores eternos de Roma e caminhou, em 2013, sobre a areia da ilha de Lampedusa, o limiar ocidental do Mediterrâneo. Ali, onde repousam os corpos de milhares de migrantes tragados pelo mar, elevou sua voz e exclamou: “Despertem a consciência! Isso não pode se repetir.”
Desde então, a teologia que encarnou tornou-se uma busca constante pelo Cristo sofredor — aquele que se revela em cada migrante, cada preso, cada despossuído.
Esse é, sem dúvida, o legado mais alto que podemos recuperar e erguer como bandeira. Porque, desde ontem — e para sempre — cada um de nós, independentemente do credo que professe, está chamado a ser um Francisco. Para reencontrar a humanidade tantas vezes perdida. Para construir um mundo mais fraterno, sem ódio, em que a dignidade e a autoridade justa sejam os pilares de uma convivência verdadeiramente pacífica.
Publicado originalmente em El Diario AR
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

