Paulo Henrique Arantes avatar

Paulo Henrique Arantes

Jornalista há quase quatro décadas, é autor do livro "Retratos da Destruição: Flashes dos Anos em que Jair Bolsonaro Tentou Acabar com o Brasil". Editor da newsletter "Noticiário Comentado" (paulohenriquearantes.substack.com)

393 artigos

HOME > blog

A parolagem da gastança

Os três mantras de “o mercado” cumprem a função de inculcar no cidadão comum a ideia de que austeridade é sinônimo de saúde econômica

Notas de reais (Foto: Agência Brasil )

O governo é gastador. O país vai quebrar. Temos um enorme rombo fiscal. 

Os três mantras de “o mercado”, reproduzidos diuturnamente pela imprensa liberaloide, cumprem a função de inculcar no cidadão comum a ideia de que austeridade é sinônimo de saúde econômica. Já reproduzimos neste espaço a perspicácia da economista italiana Clara Mattei para explicar como a alta finança e seus princípios “austeros” serviram ao fascismo e serviram-se dele.

Em “A ordem do capital” (Boitempo, 2023), Mattei escreveu: “Ao contrário do que os defensores da austeridade querem nos fazer pensar, o sistema socioeconômico em que vivemos não é inevitável nem deve ser relutantemente aceito como o único caminho a seguir. A austeridade é um projeto político decorrente da necessidade de preservar as relações de dominação das classes capitalistas. É resultado da ação coletiva para excluir quaisquer alternativas ao capitalismo. Portanto, pode ser subvertida por meio de uma ação contrária também coletiva. O estudo da lógica e do propósito da austeridade é um primeiro passo nessa direção”.

É gratificante saber que na imprensa brasileira nem todos os analistas econômicos estão cooptados por “o mercado”. No Valor Econômico, o experiente Pedro Cafardo costuma nos brindar com sua lucidez. Um peixe fora d’água, certamente.

Em sua coluna de 25 de fevereiro, Cafardo valeu-se de considerações do maior economista keynesiano brasileiro, Luiz Gonzaga Belluzzo, para explicar como e por que as contas de um país não podem ser regidas pela lógica da economia doméstica, em que gastar mais do que se possui fatalmente leva à quebra. No caso do Estado nação, endividar-se pode ser salutar, e quase sempre o é.

Eis um trecho do artigo de Cafardo:

“A dívida pública brasileira é em reais. E não há um único caso na história de quebra de dívida pública em moeda local. O Tesouro emite e os bancos centrais têm facilidade de comprar e vender títulos públicos para regular as taxas de juros e não permitir que haja descasamento nas operações. Para isso, o Estado capitalista criou instituições adequadas: os bancos centrais e os tesouros nacionais. Os balanços dos bancos têm hoje participação enorme dos títulos públicos, que constituem a riqueza financeira do capitalismo. Não existe estrutura financeira ou mercado financeiro sem a presença de título público, porque ele é o ativo de última instância, com segurança e liquidez. O entendimento imposto ao cidadão comum, portanto, é primário e incorreto, mas se propaga porque existe, segundo Belluzzo, uma parolagem sobre risco fiscal reproduzida em jornais, redes sociais e até em editoriais da grande mídia.”

É claro que os economistas heterodoxos, quase sempre à esquerda, não estão a estimular que o governo contraia dívida indiscriminadamente e saia a queimar o dinheiro. Conforme bem exposto pelo colunista do Valor, “países não quebram por dívida em moeda local. Mas essa dívida não pode aumentar descontroladamente, porque é um indicador da saúde fiscal de um país. Isso é verdade, mas é sabido que o Brasil está longe de ser um dos países mais endividados do mundo quando se considera a relação dívida/PIB, atualmente em 76%. Alguns exemplos: 260% no Japão, 137% na Itália, 122% nos Estados Unidos, 110% na França”.

Ao lado de Pedro Cafardo, trazem alento à análise econômica jornalistas como José Paulo Kupfer, Luís Nassif e mais um ou outro. São poucos os heróis diante do exército de serviçais de “o mercado” ocupando espaço na mídia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.