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Mavetse Dionysopoulos de Argos

Mestre em Arqueologia Clássica MAE/USP

2 artigos

blog

A peste são os outros: necropolítica, negacionismo e autoritarismo em tempos de pandemia

É preciso sair da cegueira branca que nos tem levado para as trevas; urge combater o vírus e esta peste, derrubar estes muros de ignorância, combater tanto o vírus que nos mata, quanto o autoritarismo que nos asfixia

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“O inferno são os outros." 

Jean-Paul Sartre

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‘ A peste são os outros e em um contexto em que milhares pessoas morrem, enquanto outras se aglomeraram em festas clandestinas de fim de ano, ou não quiseram ficar sem carnaval, a pandemia continua a se alastrar... O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes? O questionamento é de Albert Camus. Tais paredes crepitantes podem ser interpretadas como o muro de ignorância que está por trás da legitimação de um governo, que cada dia que passa se atém a tentar minimizar o contexto nefasto e destruidor de uma pandemia que não está sendo devidamente combatida. Se institui assim, o que Achille Mbembe cunhou de “necropoder”. Vivemos o constrangedor momento de vermos brasileiros morrerem, enquanto uma parcela da população acredita que a terra é plana, nega a ciência, não usa máscaras e não adota as medidas preventivas que nos tornam imunes ao vírus. Negar, negar e negar... a postura de uma parcela de brasileiros que está no lado anverso da História.

Negar é algo que o ser humano sempre fez. Não se negou a Sócrates o direito de falar sobre suas ideias aos jovens atenienses e o fizeram beber cicuta? Galileu não teve que praticamente negar a sua teoria do heliocentrismo e copernicanismo, se não seria levado a queimar nas chamas de uma fogueira?  Na Tropicália Caetano disse “Eu digo não ao não!” É preciso negar os negacionistas. Porque muitos hoje negam a ditadura militar, mesmo com todas as evidências históricas, empiricamente sistematizadas e colocadas à disposição daqueles que não viveram este momento histórico e quiserem pesquisar e constatar, o que foi este período da história. 

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O Governo Federal, há três meses não distribui mais o auxílio emergencial às pessoas em situação de risco e negocia a volta deste direito ao povo. Ao protelar e negociar, ele nega às pessoas o direito à vida, e solapa a Constituição. As declarações do atual presidente da república escancaram o seu desrespeito à vida de milhares de cidadãos brasileiros que feneceram por conta do Covid-19. Grosseiramente quando aquele que era para ser o maior chefe da nação vem a público tentar minimizar a gravidade do momento que o Brasil atravessa, expressa com sua fala sua necropolítica. “A morte é a putrefação da vida, fedor que é, ao mesmo tempo, sua fonte e condição repulsiva”. Não há sequer decoro, pela investidura do cargo que ocupa, na fala do atual presidente do Brasil. O espectro da morte, expressado por suas palavras, por seus atos e suas feições, revela o retrato repulsivo de quem não tem apreço, nem respeito pela vida e pela memória de seres humanos que se foram neste contexto de pandemia. Como um Dorian Gray que nunca mostrou-se belo, ele se debate e a todo instante revela sua face sombria que se agarra ao poder que lhe deram. Como se a facada que recebeu, e o catapultou ao cargo que ora ocupa, mostrasse o sombrio que sempre carregou em suas entranhas. Em 06 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, Minas Gerias, o primeiro indício de neofascismo rondava o Brasil.  Se anunciava, com aquela facada, o cenário que culminou com a vitória do atual presidente, simpatizante das ideias instituídas pelo regime militar em 1964. Simpatia esta expressada por ele e seus eleitores ao afirmarem que não houve o golpe militar.

Em 20 de abril de 2020, já eleito presidente, Jair Bolsonaro recebeu a seguinte pergunta "Presidente, hoje temos mais de 300 mortes. Quantas mortes o senhor acha que...", dizia o jornalista ao ser interrompido. "Ô, ô, ô, cara. Quem fala de... eu não sou coveiro, tá?" Nos lembra Camus: Mas o que são milhões de mortos? Quando milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. Estamos em guerra, em guerra contra uma pandemia e milhares de cadáveres brasileiros parecem esfumaçar-se a cada fala vulgar, medíocre e desrespeitosa do atual presidente da república sobre o número de mortos que cresce vertiginosamente. Com 1.840 mortes registradas no dia 03/03/2021, o Brasil teve, neste dia, uma média móvel de 6,3 novos registros de óbitos para cada um milhão de pessoas. Assim a cada canhestra declaração, os cadáveres esfumaçam-se apenas na sua imaginação, que insiste em dizer ser “mimimi”, que o Brasil precisa seguir... seguir enquanto milhares morrem é naturalizar a morte e banalizar a vida, é a expressão da banalidade do mal, é trazer para si a sua face desumana.

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O negacionismo deu suas mãos ao autoritarismo, legitimando assim este necropoder, tornando o Brasil um país que há dois anos está à deriva, desgovernado e a naufragar neste mar de distopia. Há aqueles que irão dizer que esta distopia não existe e que há um certo exagero em classificar o atual governo de fascista. Mas o fascismo, como nos lembra Bobbio, é a explosão que de improviso e irracionalmente surge de forças demoníacas que encarnam em regimes despóticos. Não existe nada mais demoníaco, despótico, destruidor do que usar a própria democracia para se alastrar como uma erva daninha que se agarra ao verde desta flâmula e não quer mais soltar. Por isso Hannah Arendt salienta A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes Mesmo que estejamos em uma democracia, a necropolítica estabelecida pelo atual governo, visualizada não só em medidas que desmontam muitas das instituições brasileiras sedimentadas em governos anteriores, mas principalmente na maneira como não  se  combate a pandemia. Como se tivesse num palco de Comedia dell’Arte, o presidente insiste em negar a gravidade do momento e usar sua linguagem vulgar para minimizar a realidade em que o país se encontra. 

Necropolítica, necropoder, neofascismo instituídos no Brasil, expressados na figura do presidente da República e de seus ainda apoiadores. Quando vemos uma fotografia de um ônibus de São Paulo lotado de pessoas, homens, mulheres e crianças que precisam seguir suas vidas normalmente, porque não lhes é dado o direito de permanecer em lockdown, vemos o quão nociva para um país pode ser a escolha de um presidente. “A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política.” A observação é de Hannah Arendt em seu livro “Homens em tempos sombrios”. Mas urge cobrar muito à política e àqueles que estão nas três esferas do poder. Uns por desilusão, outros por escolha deram seu voto a este governo. Há um vampirismo de pálidos, subterrâneos, sanguessugas... que se instalou no centro do dispositivo social brasileiro e está com seus grilhões a nos agrilhoar. 

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Estamos presos em nossas casas enfrentando um inimigo invisível que nos ataca, mas temos que enfrentar também a visível e nefasta ação de um governo que insiste em sedimentar suas bases na anticiência, no obscurantismo, no negacionismo, na propagação da morte como uma “peste” que se travestiu de verde e amarelo, foi às ruas pregar a moral e os bons costumes, com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, mas que na verdade nos ataca como uma epidemia totalitária, sombria, que nos oprime e muitos teimam em legitimar. 

A peste são os outros. Saramago nos lembrou bem: “a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”, onde pessoas estão mais preocupadas em garantir o seu bem-estar do que olhar para o outro. Assim naturaliza-se a morte, como se nada fosse, até que bata à porta de sua casa. Hannah Arendt, que viveu nos tempos do nazismo, nos lembrou um dia "Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança". Nos parece que alguns perderam a esperança na igualdade, na solidariedade, na fraternidade. Querer um governo autoritário, totalitário, de extrema direita, não é querer pulso firme; é perder a capacidade de se colocar no lugar do outro; é perder a capacidade de empatia, é achar, por exemplo da forma mais estapafúrdia, que as embalagens saíram do mercado porque catadores de papelão estão a receber o auxílio emergencial, em uma total desinformação. Assim, perder a esperança é asfixiar o humanismo, é não olhar para o Brasil como um país onde todos deveriam ter o direito às mesmas oportunidades. 

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Em 10 de março de 2021 foram registradas 2.349 mortes em um único dia no Brasil. Então, aquele que ri, quando o atual presidente diz para ir buscar vacina na casa da mãe, compactua com ele dessa banalidade do mal. Sim é preciso nomear: banaliza-se o mal, despreza-se a vida, coloca-se um muro de ignorância e de falta de solidariedade pelo outro. Esse riso de fundo, na fala do então presidente é a peste invisível que se amalgama à pandemia, é esse conservadorismo invisível, entranhado em alguns como um vírus, que em muitos nunca será curado, veio à tona com um discurso de ódio por parte de uma parcela da sociedade brasileira. Uns se arrependeram, outros continuam firmes em seus preceitos. Antagônico, contraditório, este discurso que amalgama amor cristão, temor a Deus associado a um ódio às minorias e à luta por direitos em um mundo desigual firmou o bolsonarismo, que se fez em cima de uma propaganda militarizada, com gestos que imitam armas para enfrentar o que denominavam o “demônio comunista” e a utilização de uma “fé” tão presente nos ruminantes da suábia. Ressentidos e frustrados, talvez com sua própria vida e condição, elevaram ao poder a sua face mais sombria, negacionista, autoritária, totalitária. A peste é ele e são os outros. É preciso combater a pandemia, este vírus invisível que assola o mundo; é preciso também combater o autoritarismo que mata tanto quanto um vírus devastador; mata mulheres negras e democraticamente eleitas, mata a esperança, asfixia o humanismo, mata a possibilidade de liberdade, de igualdade, de fraternidade. Em um de seus poemas Federico Garcia Lorca diz: Ver passar os espectros de vida que se apagam, ver o homem desnudo e Pégaso sem asas. É preciso ver passar os espectros, devolver asas ao Pégaso e esperança ao homem, dizer não à peste que se alastra, combater o que nos sufoca, nos arrasta para escuridão. É preciso sair da cegueira branca que nos tem levado para as trevas; urge combater o vírus e esta peste, derrubar estes muros de ignorância, combater tanto o vírus que nos mata, quanto o autoritarismo que nos asfixia. Tirar do verde desta flâmula a sombra que não pode mais permanecer.

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