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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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A quem serve a boca aberta de um ministro do Supremo?

Em meio à guerra de narrativas, Barroso entrega à extrema direita o que ela mais queria: a validação simbólica de que o 8/1 foi uma reação ao domínio externo

Luís Roberto Barroso (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Quando a vaidade se torna uma arma na guerra híbrida 

A recente declaração do ministro Luís Roberto Barroso de que o “apoio dos Estados Unidos foi decisivo para evitar um golpe de Estado no Brasil”  é um episódio revelador da crise institucional e informacional que o país vive. Em meio a um cenário onde a extrema direita tenta emplacar uma narrativa revisionista sobre o 8 de janeiro de 2023, esse tipo de fala, vinda do presidente da mais alta cúpula do Judiciário, não apenas fragiliza a autoridade da Corte como oferece munição retórica àqueles que trabalham sistematicamente para confundir a opinião pública.

Barroso, em sua ânsia por reconhecimento e protagonismo público, parece esquecer que golpes não se evitam com discursos em auditórios estrangeiros, muito menos com a legitimação, mesmo que involuntária, da ideia de que potências estrangeiras têm autoridade para garantir a estabilidade institucional de um país soberano. Ao contrário do que afirmou Barroso, não foi a diplomacia estadunidense que evitou a ruptura democrática no Brasil, mas sim a total ausência de condições objetivas e geopolíticas para que os EUA se envolvessem diretamente num golpe patrocinado por um aliado do trumpismo em pleno século XXI.

Essa declaração, mais do que vaidosa, é desastrosa. Ela reforça, mesmo que sem intenção, a percepção bolsonarista de que havia um plano legítimo de ruptura, e que ele só não prosperou por interferência externa. Ou seja, fornece o álibi perfeito para que setores extremistas, hoje em campanha aberta por anistia, construam a narrativa de que o Brasil sofreu, na verdade, uma intervenção internacional para impedir a “vontade popular”.

O que poderia ser apenas mais um tropeço verbal de um magistrado vaidoso, no contexto da guerra híbrida, transforma-se em um ato comunicacional estratégico involuntário, e perigosamente eficaz para alimentar o caos cognitivo que sustenta o fascismo em tempos de desinformação sistêmica.

Barroso e seu histórico de falas desastrada

Não é a primeira vez que Luís Roberto Barroso se coloca, de forma imprudente, como protagonista de uma encenação institucional que deveria prescindir do ego. Desde que assumiu o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, Barroso se notabilizou por uma série de declarações públicas que extrapolam o papel de um magistrado e flertam com a retórica performática. Ele parece movido por uma necessidade de afirmação que, em tempos normais, poderia ser apenas incômoda, mas que, no cenário atual, torna-se uma ameaça à sobriedade exigida pela função.

Reagir a fascistas é necessário e, convenhamos, também uma delícia. Mas a frase ‘perdeu, mané, não amola’, dita a apoiadores bolsonaristas nos Estados Unidos, extrapolou o prazer pessoal e viralizou como símbolo de arrogância institucional, sendo apropriada pela extrema-direita como justificativa simbólica para o radicalismo que culminou nos ataques de 8 de janeiro. A sua declaração no Congresso da UNE, onde afirmou que “nós derrotamos o bolsonarismo”, escancarou ainda mais sua confusão entre função de Estado e militância pública. O episódio mais recente, em que Barroso declarou que um acordo bilionário sobre Mariana “daria para passar um bom fim de semana”, atingiu o ápice do descolamento da realidade e da insensibilidade institucional.

A recorrência dessas falas revela não apenas imprudência. Revela uma dissonância entre a liturgia do cargo e a vaidade de sua persona. Barroso se comporta, muitas vezes, mais como um conferencista liberal em busca de aplausos em auditórios internacionais do que como um guardião da Constituição. A teatralidade do verbo substitui o rigor do silêncio. O aplauso substitui o acórdão. A vaidade, que deveria ser vigiada, torna-se parte do espetáculo.Cada vez que um ministro do STF se projeta acima da função e transforma suas convicções em slogans de manchete, abre-se uma rachadura no edifício já frágil da confiança pública. E Barroso, ao longo de sua trajetória, tem ampliado essa rachadura com declarações que se tornam combustível para a desinformação, o ressentimento político e a reorganização narrativa da extrema-direita.

A guerra híbrida e a modulação da percepção pública

O que muitos ainda tratam como apenas mais uma frase infeliz de Barroso, na verdade, funciona como um estímulo estratégico dentro do ecossistema da guerra híbrida que o Brasil enfrenta de forma cada vez mais evidente desde meados dos anos 2000. Nesse tipo de conflito, as armas não são tanques nem fuzis, mas narrativas moduladas para fragilizar instituições, dissolver consensos e manipular afetos. É nesse ambiente de disputa simbólica permanente que declarações como a de Barroso deixam de ser simples escorregões retóricos e passam a ocupar lugar estrutural na arquitetura informacional da desestabilização política e cognitiva.

A psicologia comportamental nos ajuda a compreender como isso opera. Quando uma figura de autoridade institucional como um ministro do Supremo Tribunal Federal afirma publicamente que os Estados Unidos foram decisivos para evitar um golpe de Estado no Brasil, ele não apenas distorce as dinâmicas geopolíticas reais, como também aciona um estímulo verbal de alto impacto simbólico. Para a bolha bolsonarista, esse tipo de declaração opera como reforço positivo ao viés de confirmação. Ao ouvirem de um ministro da Suprema Corte que de fato havia uma articulação golpista e que ela foi neutralizada por pressão internacional, os adeptos do bolsonarismo passam a reinterpretar o 8 de janeiro como um ato legítimo de resistência nacional a uma interferência estrangeira.

Esse reforço simbólico tem efeitos profundos na modulação da percepção pública. Ele atua como um condicionador psicoafetivo que reorganiza as narrativas no imaginário coletivo e reconfigura as fronteiras entre crime e heroísmo, golpe e patriotismo, justiça e perseguição. Em um ambiente já saturado por pânico moral, redes de desinformação e revisionismo histórico, uma fala como essa de Barroso oferece uma âncora cognitiva perfeita para que a extrema-direita rearticule sua ofensiva. Trata-se de um processo típico de guerra híbrida: deslocamento de significados, infiltração discursiva e reprogramação emocional da opinião pública.Barroso, ao verbalizar de forma imprudente uma suposta intervenção estrangeira na soberania brasileira, transforma-se involuntariamente em peça de uma operação psicológica sofisticada. Não é preciso má-fé para gerar dano. Basta imprudência, vaidade e protagonismo no momento errado. Em tempos de guerra híbrida, o ruído institucional não é apenas um ruído. Ele é, muitas vezes, um instrumento a serviço da confusão, da descrença e da manipulação calculada da sociedade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.