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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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A raiz reacionária do sertanejo universitário

A dor de corno é nosso verdadeiro hino nacional. Nossa proclamação de independência foi um ato de traição, assim como a da república

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No nosso português há, grosso modo, quatro palavras para propriedades rurais: fazenda, sítio, chácara e rancho. Ignoremos a última, por ser exclusiva de terrenos margeando rios. Fiquemos, portanto, com a fazenda, o sítio e a chácara.

Nossa língua é o meio fantástico pelo qual nos expressamos, mas essa dádiva vem com reveses. Um deles é que as palavras se cristalizam e acabamos tomando por normal o que não deveria sê-lo. Para que fique mais evidente que o normal, para nós, é pura anomalia, peguemos a palavra anglo-saxônica “farm”. Ter tal título de propriedade não é de modo algum garantia de riqueza e de bonança. Um “farmer” pode ser uma pessoa com poucos recursos e que passe dificuldades. E isso não significa de nenhum modo uma superioridade cultural, senão um indício muito concreto de marcas históricas e econômicas. Voltemos às palavras do português brasileiro: fazenda, sítio e chácara dizem respeito ao tamanho, às extensões de terra. Quando dizemos que alguém tem uma fazenda, estamos deixando claro que esse alguém é rico. O ponto de referência para as nossas palavras, aquilo em torno do qual oscila nossa imaginação, é o latifúndio.

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Não foi à toa que o brasilianista Thomas Skidmore tenha ficado, nos idos da década de 1960, assombrado com o fato de que nosso ministério da economia se chamasse “Ministério da Fazenda”. É curioso que alguns ministérios tenham mudado de nome no mundo todo, por sutileza hipócrita, e se convertido dos antigos “Ministérios da Guerra” para “Ministérios da Defesa”. Mas a palavra fazenda permaneceu e superou todos os obstáculos até que, quando nos tornamos fatalmente uma neocolônia, tenha então se convertido ao termo “Economia”. Significativo, para dizer o mínimo. Nenhum movimento é mais delator de suas intenções que o ocultamento precário: como os ursos de desenho animado que se escondiam atrás de arbustos.

É preciso ter essas palavras em mente para que possamos compreender a raiz reacionária do chamado sertanejo universitário. Porque alguns comportamentos, à luz do tempo passado, deixam tão evidentes certos processos históricos que hoje nos assombra não lhes termos dado a devida atenção. Seria impossível tamanho grau de reacionarismo sem que surgissem evidências fermentando ao nosso redor. Não digo que as jornadas de 2013 não tenham sido um ponto de inflexão, a ser estudado nos livros de história. Mas quero apontar para o fato de que houve muitos outros indícios, não tão aparentemente politizados, mas sem os quais não haveria um corpo histórico disponível para ser possuído pela mídia, pelo judiciário, pelo moralismo udenista. E o sertanejo universitário foi um dos movimentos culturais (ou comerciais) que desviaram certo orgulho nacional das eras petistas para seu oposto, para sua reação.

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Jessé Souza já escreveu sobre como certo neopentecostalismo atribuiu à melhoria de vida uma raiz religiosa, ocultando suas fontes políticas. E Jessé o fez sem generalizações - é preciso lembrar - reconhecendo o papel importantíssimo, político e social, que prestam e prestaram muitas igrejas pelo Brasil. Mas assim como algo transformador pode ser canalizado para seu oposto, para a força do que nunca se transforma, assim também vimos acontecer com alguma religiosidade, com alguma manifestação de rua e, certamente, com alguma postura da música sertaneja comercial.

O orgulho de ser brasileiro era algo perceptível durante os governos petistas. O curioso é que, como alguns artistas que primeiro são reconhecidos fora para depois serem aceitos em seu próprio país, nosso orgulho rodou o mundo, passou pela boca de diversos chefes-de-estado e se fixou até mesmo em capas de revistas liberais, enquanto aqui foi desviado para outros fins. Aquele que não foi transformado em cinismo, mais tarde o seria em ódio. Mas falemos um pouco da música caipira.

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A cultura sertaneja, de origem humilde, passou por sua adolescência romântica nos fins da ditadura e encontrou seu orgulho adulto em um delírio de bêbada ostentação. Não que o chamado “sertanejo raiz” não tenha seus problemas - à parte sua imensa inventividade, com um repertório que oscilava da pura comédia ao fantasmagórico e ao trágico-burlesco - como na canção de Tião Carreiro e Pardinho em que uma garota promete um beijo que, “ai”, só consegue cumprir ao pegar a cabeça decepada de seu vaqueiro - à parte sua inventividade, a música dita de raiz padecia dos defeitos que o próprio país também padecia. Certa identificação do cantador com os ricos era interposta a críticas a esses mesmos ricos. Mas em um país de tradição escravocrata, identificar-se com o patrão pode ser uma questão de sobrevivência. Isso se explicaria em um ambiente essencialmente rural. Fora dele, torna-se covardia. 

Mostrar como o “rei do café” foi humilhado pelo “rei do gado” em um bar em Ribeirão Preto acaba por ser até mesmo uma certa alegoria mal ajambrada da história econômica recente. Mas, como aconteceu atualmente com a velha dupla Divino e Donizete, celebrar pelo sertanejo um humilde “rei da cana”, que anda como um pobre à beira da estrada para pagar uma promessa pela cura do filho - aí já é demais. De todo modo, é quando chegamos ao sertanejo universitário que os defeitos nacionais se intensificam e passam a um estágio de glória, de usurpação cínica do orgulho de um país em ascensão.

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Primeiro, a própria alcunha. O “universitário” é já um toque de exclusivismo. Talvez “sertanejo urbano” fosse mais apropriado, não fosse que “universitário” enfatizava melhor o sentimento de superioridade que as classes médias e abastadas traziam desde os tempos do bacharelado. Uma música masculina, machista, com ares de superioridade seria em si repulsiva, mas havia mais. Se escorando em uma tradição que ela se esforçava por arrebentar (quem se lembra do “os filhos de hoje em dia já não obedecem os pais?”), sem nenhuma crítica à riqueza, obliterando as marcas da luta de classes, o sertanejo universitário se identificou perfeitamente com o dono de terras, assim acreditando que se reunia orgulhosamente a suas raízes nacionais. 

As classes médias selavam seu acordo com as classes dirigentes, ao identificarem-se com elas. Alguém que dançasse nos bailões estroboscópicos das grandes cidades e, ao invés de cinta, fivela, bota e chapéu, colocasse na cabeça um boné do MST - esse certamente correria risco de vida ou de ironia. Cantava-se a irresponsabilidade típica dos abastados, sua ostentação, seu luxo, seu desprezo pelo outro, seu pendor para o sadismo, para a humilhação. Se o “pagode” das décadas de 50 em diante tinha certamente as marcas de uma sociedade racista, violenta e machista, avessa à mudança, o sertanejo “vibrato” dos anos 1980 tampouco se saía melhor: Chitãozinho e Chororó cantaram tardiamente sua estranhíssima misoginia: “Jeito de cowboy, num corpo de mulher, do tipo que não olha pra ninguém”, para arrematar em “ela é segredo, ela mete medo”, já deixando claro que há homofobias que se fundam em franca atração (não será essa a nossa versão caipira da femme fatale, a mulher que assusta por ser essencialmente homem?).

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Mas essa versão sertaneja, tornada célebre também nas vozes de Zezé diCamargo e Luciano, tinha como ponto forte a traição: a música de corno. E, por quê? Ora, a história brasileira é uma história de traição. Não há país no mundo mais obsessivo que o nosso. A dor de corno é nosso verdadeiro hino nacional. Nossa proclamação de independência foi um ato de traição, assim como a da república; a república velha foi um baile, dois pra lá dois pra cá, de traição coordenada; o fim da escravidão provou-se uma traição infame e nunca reparada; o primeiro gesto com os nativos da costa, em 1500, foi o de traição da amizade ofertada. Getúlio foi traído por Café Filho; Tiradentes foi o mártir da Inconfidência (que é inconfidência senão trair, faltar com a confiança?); foi traído e, quando se tornou herói, foi virado ao avesso pelas mãos da elite que o matou; Dilma foi traída por Temer, a Lava-jato foi um longo ato de traição em surdina; as greves de 1917 foram vitoriosas e, depois, traídas; Pedro I foi um traidor, em níveis nacionais, internacionais e de alcova. E podemos prosseguir ao infinito. 

Somos dominados pelas elites, que não hesitam em trair seu povo por não se reconhecer como parte dele. E o poder popular, que sempre eclode, é sempre fisicamente esmagado. Portanto, a traição é uma constante. E, por vezes, até mesmo entre os membros das classes dirigentes há essa tendência ao inescrupuloso: Doria passou uma rasteira em seu padrinho político e a qualquer momento esperamos alguma articulação entre Mourão e outros militares.

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Enfim, a traição é um patrimônio nacional. Pois, o que seria o “complexo de vira-latas” senão nossa emulação desse comportamento? Quando falamos que “o brasileiro não presta”, estamos imitando as classes dirigentes, estamos nos identificando com os invasores, e traindo o povo - traindo a nós mesmos. 

Mas na sertaneja chorosa de Chitãozinho havia ainda um lamento, algo que ecoava a dor dessa traição que se estende no tempo ao ponto de se parecer a um destino. Com o sertanejo universitário, demos enfim um passo adiante. Nos tornamos cínicos. Somos nós quem traímos - e nos orgulhamos disso. Somos irresponsáveis como os ricos, que contam com a certeza da impunidade. Nos reconhecemos no fazendeiro, no dono de terras, cantando hosanas debochadas à caminhonete cabine dupla. Selamos nossa aliança com aqueles que nunca vimos. 

A única rebeldia é a mulher traída, agora, jogar a seu traidor uma nota de cinquenta reais, em um ato de desiludida monogamia. Por repulsa à ascensão dos pobres e dos negros, dos sítios, das chácaras e da periferia, fizemos um acordo com a elite que sequer precisou esticar a mão para selá-lo. Pois, se o fizesse, qual estranho braço encontraríamos? 

Sob luzes epiléticas, disfarçados com as roupas de um leiloeiro do Tennessee, dançamos, bêbados, e agora aquele que sempre nos traiu passa a oferecer uma estranha forma de amor, uma dúbia aliança: “Você decide, a minha boca ou a do litrão/ Cê quer dançar comigo ou descer até o chão, sozinha?/ Você quer ser da bagaceira ou quer ser minha?” O não ao litrão, a renúncia à bagaceira equivalem ao sim dado ao casamento de conveniência na Fazenda, no Engenho cujo subproduto é bagaço - o casamento de conveniência, que vê a traição como um mal menor. 

Entre a chácara, o sítio e a fazenda, optamos pela última: por nos marcarmos com o signo da monocultura.

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