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Bia Willcox

Bia Willcox é advogada, jornalista e pesquisadora nas áreas de Empreendedorismo, Inovação e Marketing. Atua como mentora de negócios e escreve sobre os impactos da hiperconectividade, da inteligência artificial e das tecnologias emergentes nas relações humanas e no futuro da sociedade.

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A renascença analógica

No excesso de estímulos, promessas e incertezas sobre os rumos do digital, uma tendência silenciosa ganha força

A renascença analógica

Nem todo negócio precisa virar startup. Nem toda ideia precisa escalar. Em tempos de excesso digital e competição desenfreada, o maior diferencial pode ser justamente o que só se entrega ao vivo, no tempo certo, com o nome certo, no bairro certo. Este artigo defende com convicção o valor estratégico do empreendedorismo analógico — aquele que opera com vínculo, limite e autoria. Ele não resiste ao futuro. Ele o reinventa.

No excesso de estímulos, promessas e incertezas sobre os rumos do digital, uma tendência silenciosa ganha força: o retorno a práticas empreendedoras tangíveis, ancoradas no fazer com as mãos, no contato com o cliente e na entrega física de valor. É sobre criar, montar, servir, cultivar, vender — não apenas clicar, editar ou programar.

Chamada por alguns pesquisadores de renascença analógica, essa movimentação reflete não apenas uma busca por bem-estar e clareza, mas também uma resposta estratégica à saturação dos modelos digitais, à volatilidade das plataformas e à concentração extrema de poder nas grandes empresas de tecnologia. Empreender no digital, para muitos, deixou de ser viável: os custos de aquisição de clientes dispararam, o alcance orgânico desapareceu, e o investimento necessário em gestão de custos diversos como tráfego pago, planejamento de mídia, otimização de conversão (CRO), análise de dados e business intelligence (BI), posicionamento e identidade visual (branding), design de interfaces, produção de conteúdo multiplataforma, além da infraestrutura tecnológica para e-commerce, CRM, automação e atendimento digital, tornou-se alto demais para quem está começando. Iniciar um negócio digital hoje, na prática, exige uma equipe multiprofissional e altamente técnica — ou uma curva de aprendizagem solitária e exaustiva. Frente a esse cenário, cada vez mais empreendedores buscam alternativas mais previsíveis, acessíveis e humanas de gerar valor.

Estudos como o do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) mostram que, mesmo com o aumento do medo do fracasso, o número de pessoas que reconhecem oportunidades para empreender permanece alto. Isso demonstra que o impulso empreendedor continua forte — mas vem mudando de forma. Já os dados da OECD revelam que menos de 20 % das pequenas empresas europeias são altamente digitalizadas, o que reforça a existência de um espaço real para negócios que operam com modelos híbridos ou majoritariamente analógicos.

Nesse cenário, pesquisadores como Philip Roundy e Mark Bayer propõem um novo campo conceitual chamado analog entrepreneurship — um fenômeno ainda subexplorado na academia, mas cada vez mais presente na prática. Em vez de perseguirem oportunidades ligadas à criação ou adoção de novas tecnologias, os empreendedores analógicos constroem negócios baseados na re-adoção de tecnologias analógicas que haviam sido deslocadas pelas alternativas digitais dominantes.Em artigo recente publicado no Journal of Research in Marketing and Entrepreneurship, os autores delineiam uma teoria de médio alcance que explica como esses empreendedores influenciam a revitalização e o reposicionamento de tecnologias legadas no mercado contemporâneo. Utilizando a perspectiva das micro fundamentações, Roundy e Bayer mostram que o ressurgimento dessas tecnologias — como vinil, fotografia analógica, máquinas de escrever, ferramentas manuais ou interações presenciais — não acontece apenas por nostalgia ou desejo de consumo vintage, mas por ações estratégicas de empreendedores que criam negócios capazes de gerar nova demanda e novas narrativas em torno dessas experiências.

O diferencial da teoria está em mudar o foco: não é sobre o fim das tecnologias analógicas, mas sobre como certos empreendedores conseguem trazê-las de volta à cena — dando a elas novo propósito, apelo e viabilidade comercial em meio ao cansaço das soluções 100% digitais. A sacada da teoria é virar o holofote da tecnologia para quem realmente faz as coisas acontecerem: os empreendedores. São eles que impedem que as soluções analógicas desapareçam de vez — reinventando seu valor, seu lugar no mercado e sua conexão com o público num mundo exausto de excessos digitais.

Mais do que resistência, portanto, o analog entrepreneurship representa uma reorganização lúcida do trabalho e do valor. É uma forma de empreender que permite ampliar o impacto econômico e simbólico sem depender da lógica extrativista das plataformas digitais. Para muitos, é também uma forma de recuperar a agência sobre o próprio negócio — decidindo o que vender, como vender, para quem se relacionar, com que linguagem e a que ritmo. E isso, no contexto atual, é mais do que uma alternativa: é uma estratégia real de viabilidade.

O colapso das promessas digitais para o pequeno empreendedor

Durante anos, o marketing digital foi vendido como um passaporte democrático para o sucesso. Bastava ter um bom produto, alguma criatividade e presença online. Mas o que parecia um campo aberto se transformou, aos poucos, em um jogo caro, técnico e desigual.

O custo dos cliques disparou. O alcance orgânico praticamente evaporou. E o que antes se resolvia com um bom post, agora exige uma engrenagem profissional cara e complexa: gestão de tráfego, segmentação, funil, BI, automação, SEO, design responsivo, produção multiplataforma. Para competir de verdade, é preciso dominar — ou contratar — várias frentes especializadas. E isso tem preço.

Além disso, o mercado digital se concentrou. Plataformas antes acessíveis foram tomadas por conglomerados com orçamento quase ilimitado e acesso a dados que pequenos negócios jamais terão. A competição ficou brutal. Muitos empreendedores não conseguem sustentar suas campanhas, não entendem as métricas e acabam gastando mais do que conseguem faturar. O marketing digital, para quem está começando, virou um campo minado.

É nesse cenário que os caminhos do empreendedorismo analógico contemporâneo — antes vistos como ultrapassados — voltam a fazer sentido, agora em versões mais híbridas, conscientes e conectadas à realidade de quem empreende fora do eixo das big techs. Empreendedores começam a combinar ações simples, de baixo custo e alto engajamento, com o apoio de ferramentas digitais acessíveis. Panfletos com QR code, atendimento via WhatsApp, feiras com pagamentos instantâneos, eventos locais anunciados por geolocalização, aulas presenciais marcadas online, parcerias de bairro com cupons digitais: tudo isso compõe uma estratégia mais manejável, eficaz e coerente com os tempos de agora.

Mais do que uma volta ao passado, trata-se de uma forma de empreender que — justamente por não depender exclusivamente do digital — aponta para o futuro. O analógico futurista não é sobre regressão, mas sobre reinvenção. E o retorno ao contato direto — à conversa, ao território, ao relacionamento — oferece um caminho viável para quem não pode (ou não quer) entrar no jogo pesado do tráfego pago. Nesse novo cenário, criatividade logística, consistência local e inteligência emocional se tornam vantagens competitivas de verdade.

Quando escalar deixa de ser a meta

Em um mundo onde tudo é escalável, rastreável e automatizável, o que não se pode copiar ganha valor. É nesse intervalo — entre o excesso de digitalização e a escassez de significado — que o empreendedorismo analógico contemporâneo encontra seu território.

Não se trata de uma volta ao passado, mas de uma escolha consciente por modelos de negócio onde o valor é percebido com os cinco sentidos. O cliente entra, toca, conversa, sente o cheiro do ambiente, reconhece quem está por trás do produto e sai com a sensação de que viveu algo — não apenas clicou em algo.

Esse modelo cresce em nichos que exigem curadoria, afeto e presença. Estamos falando de marcenarias de bairro que misturam oficina e showroom, de editoras artesanais que vendem livros em encontros presenciais com autores, de escolas de ofício que ensinam a fazer com as mãos aquilo que o mercado padronizou, de cafeterias de especialidade com clubes de assinatura híbridos, de professores que mantêm grupos presenciais e comunidades online em paralelo, de produtores agroecológicos que entregam na porta e contam a história da colheita pelo WhatsApp.

Tudo isso compõe uma nova ecologia empreendedora, glocal por definição: atua localmente, mas conversa com o mundo. Usa o digital para potencializar o contato — não para substituí-lo. E nesse jogo, ganha quem entende de gente. Quem sabe conversar, quem cria vínculos reais, quem constrói reputação com consistência e tempo.

Esse movimento tem força econômica. Ele é pequeno na escala, mas grande no impacto. O produto é finito — e por isso mesmo, desejável. A experiência é limitada — e por isso, memorável. A comunicação é direta — e por isso, confiável.

E é aqui que o tal analógico futurista mostra sua cara: empreender com presença, com tato, com inteligência relacional, não é retrocesso. É uma nova forma de avançar.

O novo luxo do empreendedorismo: ter rosto, voz e história e fazer sentido

Chamam de inovação, mas talvez o verdadeiro luxo, hoje, seja aquilo que não pode ser escalado em massa: o rosto por trás do produto, a voz que acolhe no atendimento, a história que conecta o cliente a algo maior que uma compra — e, acima de tudo, a sensação de que tudo aquilo faz sentido. No meio de tanto ruído digital, o empreendedorismo que aposta no vínculo, na presença e na construção de significado deixa de parecer modesto e começa a parecer estratégico. Ou melhor: começa a parecer urgente.

O que essa renascença analógica revela não é apenas um desvio de rota. É um diagnóstico de exaustão — e uma proposta de reconexão. O excesso de digital nos levou ao esgotamento da atenção, da confiança e, em muitos casos, da própria viabilidade. O retorno ao presencial, ao local, ao real não é fetiche. É estratégia.

Mas aqui vai um ponto essencial: crescer também é preciso. E o analógico, para ser sustentável, precisa se expandir. Só que escalar esse tipo de negócio não pode seguir o modelo industrial de franquias tradicionais. O que funciona são os modelos de expansão glocalizada: redes com propósito comum, identidade compartilhada e liberdade territorial. Gente que fala a mesma língua, mas com sotaques diferentes.

Nesse formato, o networking presencial vira inteligência de mercado. Os eventos, por menores que sejam, geram reputação. As campanhas locais, quando bem feitas, constroem comunidades inteiras. E os advogados da marca — aqueles clientes e parceiros que defendem, divulgam e pertencem — se tornam o motor invisível do crescimento.

Empreender assim exige coragem. Porque não é só sobre ganhar escala — é sobre manter o que faz sentido enquanto se cresce. É não abrir mão daquilo que sustenta: o vínculo, o território, o rosto, a entrega.

Afinal, o futuro do empreendedorismo não precisa ser todo digital. Ele pode — e talvez deva — ser humano, finito, autoral e glocal. Porque, no fim das contas, quem conseguir juntar tecnologia com afeto, escala com cuidado e estratégia com sensibilidade, não só vai sobreviver — vai liderar.

Mais cedo do que imaginamos, acumular fortunas inalcançáveis enquanto tantos lutam pelo básico deixará de ser símbolo de sucesso para se revelar como sintoma de uma privação interna — uma inquietude que cerceia a liberdade sob o disfarce da conquista.

Como expressou Simone Weil, “Nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Jamais, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão: pois ele pensa.”

Empreender, nesse novo tempo, talvez seja justamente pensar — e agir — com liberdade, com limites e com lucidez.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.