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A retórica que afronta o ridículo

Muitos podem cair no erro de achar que a verborragia inflamada de Jair Bolsonaro possa ser uma espécie de redução ao absurdo, ou de uma “retórica do absurdo”, mas não é disso que se tratam as palavras do deputado, mas do ridículo, sobretudo, em afrontá-lo e tomá-lo para si

Deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) (Foto: Raphael Fagundes)
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"Um dos defeitos mais gerais, entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério, pois o tato para acertar nestas coisas é também uma virtude do povo."
Machado de Assis

De acordo com o semiolinguísta Patrick Charaudeau, o discurso político insiste em estabelecer um triângulo consistente e útil que visa suscitar a adesão do público. Seus vértices são: a "desordem social da qual o cidadão é vítima"; a "origem do mal que se encarna em um adversário ou um inimigo"; e a "solução salvadora encarnada pelo político que sustenta o discurso".[1] O golpe de 2016 apoiou-se nesse tripé. Mas o que é mais curioso nesse imbróglio no qual o vórtice da política atual nos jogou são as manifestações radicais de um certo setor da direita.

O maior representante desse grupo é, sem dúvida, o deputado federal pelo Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, com suas frases polêmicas sobre os quilombolas, salário das mulheres e homenagens a torturadores. Seus argumentos circulam ao redor de ideias que alguns anos atrás seriam consideradas ignóbeis em qualquer retórica política, como a supervalorização do Estado policial para combater a desordem social, a disseminação do ódio contra o Partido dos Trabalhadores (um aspecto adotado por toda direita), concebido como o progenitor de todo o mal (além de demonizar a esquerda como um todo) e, por fim, o fato de ser reconhecido como o "mito", o indivíduo que encarna a solução de todos os problemas que assolam o Brasil.

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Muitos podem cair no erro de achar que a verborragia inflamada do deputado possa ser uma espécie de redução ao absurdo, ou de uma "retórica do absurdo"[2], mas não. Na redução ao absurdo, estratégia retórica apreendida por Aristóteles, o argumento é construído através da demonstração da verdade por meio de afirmações falsas. É quando o orador expõe o absurdo da tese oposta revelando a sua incompatibilidade com as verdades admitidas em uma dada sociedade. Mas não é disso que se tratam as palavras de Bolsonaro, mas do ridículo, sobretudo, em afrontá-lo e tomá-lo para si.

O ridículo e o seu papel na argumentação
Caim Perelman, um dos grandes estudiosos da retórica do século XX, e sua pesquisadora assistente, Lucie Olbrechts-Tyteca, escreveram um tratado sobre a argumentação iniciando o que ficou conhecido como a "nova retórica". Esta consiste em uma recuperação da retórica aristotélica sob a luz do conhecimento desenvolvido ao longo dos últimos séculos sobre linguística, filosofia da linguagem e outras ciências da área. Suas observações ultrapassam a retórica tradicional de forma a atualizá-la às produções discursivas do mundo contemporâneo abrindo espaço para um grande debate intelectual.

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Na obra dos autores, "Tratado da argumentação: a nova retórica", há um subcapítulo intitulado "O ridículo e seu papel na argumentação", onde abordam duas questões: a) o ridículo que o orador pode identificar na tese que se opõem; e b) o papel de ridículo, extremamente arriscado, que o orador pode adotar. Em ambos os casos, o ridículo é tratado como a "transgressão de uma regra aceita, uma forma de condenar comportamentos" ou do que se põe em oposição a concepções que são naturais numa dada sociedade.[3]

Isso aparece tanto nas declarações de Donald Trump (por exemplo: "Nova York está congelante, está nevando. Nós precisamos do aquecimento global!")[4] quanto nos discursos de Marine Le Pen sobre o Holocausto[5] ou do próprio Bolsonaro (por exemplo: "Se eu virar presidente da Comissão de Direitos Humanos, as pessoas vão sentir saudades do Feliciano. Porque, comigo na presidência, não vai adiantar pressão de grupos de defesa de homossexuais dentro da comissão").[6]

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O deputado Jair Bolsonaro e outros políticos de nosso tempo se enquadram na segunda questão analisada pelos estudiosos belgas, quando "o orador pode afrontar o ridículo, colocando-se em franca oposição a uma regra habitualmente admitida".[7] O orador abraça o ridículo e se põe em risco por condenar sua imagem perante os seguidores. Uma estratégia retórica insolente, de modo que "tal sacrifício" deve "ser apenas provisório".

Contudo, parece que o que era "provisório" resolveu se perpetuar. É a radicalização do que o jovem herói, Saint-Preux, de A nova Heloísa, romance de Jean Jacques Rousseau, escreveu em uma carta a sua amada, Julie: "tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo". E, embora distintos, o absurdo e o ridículo são aparentados.

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"É preciso ter audácia para afrontar o ridículo" dizem os autores do Tratado da Argumentação, "para não soçobrar no ridículo, é preciso um prestígio suficiente". Certamente, esses políticos adquiriram conceito com a recuperação, a partir dos anos 1990, do que antes era considerado "o cúmulo do elitismo", um populismo de direita, não só no Brasil, mas em todo mundo, que menospreza a classe trabalhadora e as diversas questões que a aflige.[8] Soma-se a isso a crise do politicamente correto, um tipo de comportamento que tinha tudo para não dar certo, pois produziu lindos discursos, porém, alheios a "construção sociocultural objetiva dos desclassificados sociais entre nós".[9]

Na teoria da "nova retórica", ao afrontar o ridículo o orador "lança um desafio, provoca um confronto de valores cujo desfecho é incerto". E essa imprevisão pode desencadear no que nos deparamos hoje corriqueiramente: o discurso de ódio. Parece que voltamos aos anos que precederam as grandes guerras, em que linchamentos, ofensas e humilhações eram cultivados por uma sociedade a beira do conflito.[10]

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A partir daí, o que é ridículo, o deixa de ser: "deixarão de ser ridículos quando outros lhes seguirem os passos". E isso é constatado no boom de grupos nas redes sociais, que compartilham e propagam os ideais do deputado fluminense, inclusive, diga-se de passagem, aproveitando-se de notícias falsas para alavancar a imagem do político.

Muitos foram convencidos por um contexto frágil e pelo aproveitamento de um orador arguto, exatamente como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca: "O prestígio do chefe é medido por sua capacidade de impor regras que parecem ridículas e de fazer seus subordinados admiti-las". A catástrofe política pela qual se passa o país e a crise de representação aliados à epidemia das redes sociais onde "uma legião de imbecis" adquiriu voz, criaram o cenário perfeito para o afronto ao ridículo.

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Entre o ingênuo riso provocado pelo ridículo e o odioso que acarreta escândalo[11], essa retórica acaba por obscurecer elementos defensores do capital e mantenedores dos conflitos de classe tradicionais. Bolsonaro, por exemplo, votou pela Reforma Trabalhista do governo Temer que, por sua vez, debilita a intermediação da Justiça do Trabalho e deixa o trabalhador a mercê da força devastadora e influente das corporações. Na fala que deprecia os quilombolas e indígenas se defende o latifúndio, a que rebaixa a mulher nas relações de trabalho, esconde as vantagens do empregador. Enaltece o mercado em detrimento do Estado, por meio de um pensamento mesquinho em que um é mocinho e outro é vilão. Isso é por si só ridículo, "simplesmente porque apenas no contexto de uma concepção esquizofrênica e irreal pode o mercado ser percebido 'apenas' como o fundamento do bem, da liberdade e da justiça".[12]

Sustenta-se um discurso ingênuo e manipulador de que o mercado seria capaz de nos salvar da corrupção que corrói a política. Trata-se de uma ignorância em relação a toda história moderna. Não podemos cair no truque desses subterfúgios polêmicos que, por um lado, colorem uma retórica estrambótica e, por outro, quer apenas obnubilar o predomínio massacrante do capital sobre o trabalho.

 


* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Trad: Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006. p. 91.
[2] ARISTÓTELES, Tópicos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007. p. 491.
[3] PERELMAN, Chaim. e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 234.
[4] O globo. “Dez declarações polêmicas de Donald Trump”. http://oglobo.globo.com/mundo/dez-declaracoes-polemicas-de-donald-trump-18564023
[5] ALTARES, Guillermo. “Absurdos que não deveriam ser ditos sobre a Segunda Guerra Mundial”. El país, Madri, 14 de abr. 2017. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/13/internacional/1492084221_516738.html
[6] O Estado de São Paulo, 07 de fev. 2014. In:  http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,as-frases-polemicas-de-jair-bolsonaro,1127819
[7] PERELMAN, Chaim. e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. op. cit., p. 237.
[8] NAGLE, Angela. “O desprezo pelo povo”. Le monde Diplomatique Brasil, abril, pp. 20-21, 2017.
[9] SOUZA, Jessé. “Os limites do politicamente correto”. ________. (org.) A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, EdUFMG, 2009. .. 100
[10] GAY, Peter. O cultivo do ódio: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Trad: Sérgio Flaskman. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
[11] Olivier Reboul, um dos intérpretes da “nova retórica” desenvolvida por Perelman e Olbrechts-Tyteca observa que “quando a incompatibilidade” com as verdades admitidas “é nociva, ela já não é ridícula, porém odiosa”. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2004. p. 170.
[12] SOUZA, Jessé. “A tese do patrimonialismo: a demonização do Estado corrupto e a divinização do mercado como reino da virtude”. __________(org.) op. cit., p. 86.

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