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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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A Riviera de Gaza

A sociedade israelense aplaude o matadouro de Gaza e vê no genocídio, não um crime, mas uma fantasia utópica

JAMAIS OUTRA VEZ (Aplicam-se Certas Restrições)– arte de Mr. Fish (Foto: Mr. Fish)

Publicado originalmente no Substack do autor em 26 de julho de 2025

Os israelenses não veem as imagens dos cadáveres esqueléticos de crianças palestinas que eles mataram de fome como uma maldição. Eles não veem as famílias assassinadas a tiros em centros de distribuição de alimentos — concebidos não para entregar ajuda, mas para atrair palestinos famintos a um enorme campo de concentração no sul de Gaza, em preparação para a deportação — como um crime de guerra. Os israelenses não encaram os bombardeios pesados que matam ou ferem dezenas de civis palestinos, onde uma média de 28 crianças morrem diariamente, como algo extraordinário. Eles não veem como bárbaro o deserto de Gaza, pulverizado por bombas e sendo metodicamente demolido por tratores e escavadeiras, deixando praticamente toda a população de Gaza sem teto. Eles não consideram como selvageria a destruição de estações de purificação de água, o extermínio de hospitais e clínicas, onde médicos e equipes médicas muitas vezes não conseguem trabalhar por estarem fracos de desnutrição. Eles não piscam diante dos assassinatos de médicos ou jornalistas, 232 dos quais foram assassinados por tentarem documentar o horror.

Os israelenses se cegaram moral e intelectualmente. Eles veem o genocídio através da lente de uma mídia e classe política falidas que lhes dizem apenas o que querem ouvir e mostram apenas o que querem ver. Estão intoxicados pelo poder das suas armas industriais e pela licença de matar com impunidade. Estão embriagados pela autoexaltação e pela fantasia de que são a vanguarda da civilização. Acreditam que o extermínio de um povo - incluindo crianças - condenados como contaminantes humanos, torna o mundo, especialmente o deles, um lugar mais feliz e seguro.

Eles são os herdeiros de Pol Pot, dos assassinos que realizaram os genocídios em Timor Leste, Ruanda e Bósnia e, sim, dos nazistas. Israel, como todos os estados genocidas — nenhuma população desde a Segunda Guerra Mundial foi despojada e faminta com tamanha velocidade e brutalidade — tem uma solução final que teria recebido o selo de aprovação de Adolf Eichmann.

A fome sempre foi o plano, o capítulo final preordenado do genocídio. Israel se propôs metodicamente desde o início do genocídio a destruir fontes de alimento, bombardeando padarias e bloqueando remessas de alimentos para Gaza, algo que acelerou desde março, quando cortou quase todos os suprimentos de comida. Alvo da destruição foi a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) — da qual a maioria dos palestinos dependia para se alimentar — acusando seus funcionários, sem fornecer provas, de estarem envolvidos nos ataques de 7 de outubro. Essa acusação foi usada para dar a financiadores como os Estados Unidos, que forneceram 422 milhões de dólares à agência em 2023, a desculpa para suspenderem o apoio financeiro. Israel então baniu a UNRWA.

Mais de 1.000 palestinos foram mortos por soldados israelenses e mercenários estadunidenses na caótica corrida para conseguir um dos poucos pacotes de comida distribuídos durante os breves períodos, geralmente de uma hora, nos quatro pontos de ajuda montados pela Fundação Humanitária de Gaza apoiada por Israel, segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU.

Uma vez que Gaza foi transformada em uma paisagem lunar após 21 meses de bombardeio de saturação, uma vez que os palestinos foram forçados a viver em tendas, sob lonas improvisadas ou ao ar livre, uma vez que água potável, comida e ajuda médica tornaram-se quase impossíveis de obter, uma vez que a sociedade civil foi obliterada, Israel iniciou a sua campanha sombria para expulsar os palestinos de Gaza pela fome.

Quase um em cada três habitantes de Gaza está passando vários dias sem comer, segundo a ONU.

A fome não é algo bonito de se ver. Eu cobri a fome no Sudão em 1988, que tirou cerca de 250.000 vidas. Há cicatrizes em meus pulmões — marcas de estar entre centenas de sudaneses morrendo de tuberculose. Eu era forte e saudável e resisti ao contágio. Eles eram fracos e esqueléticos e não resistiram.

Vi centenas de figuras esqueléticas, fantasmas de seres humanos, arrastarem-se a um ritmo glacial pela paisagem árida do Sudão. Hienas, acostumadas a comer carne humana, rotineiramente abatiam crianças pequenas. Pisei sobre aglomerados de ossos humanos embranquecidos nos arredores de vilarejos onde dezenas de pessoas, fracas demais para andar, haviam se deitado em grupo e nunca mais se levantaram. Muitos eram os restos de famílias inteiras.

Os famintos não ingerem calorias suficientes para se manterem vivos. Comem qualquer coisa para sobreviver — ração animal, grama, folhas, insetos, roedores, até terra. Sofrem de diarreia constante. Têm dificuldade para respirar devido a infecções respiratórias. Rasgam pequenos pedaços de comida, muitas vezes estragada, e os racionam numa tentativa vã de conter as dores lancinantes da fome.

A fome reduz o ferro necessário para produzir hemoglobina, uma proteína nos glóbulos vermelhos que carrega oxigênio dos pulmões para o corpo, e mioglobina, uma proteína que fornece oxigênio aos músculos, além da falta de vitamina B1, que afeta o funcionamento do coração e do cérebro. Instala-se a anemia. O corpo, essencialmente, se alimenta de si mesmo. Tecidos e músculos se deterioram. Torna-se impossível regular a temperatura corporal. Os rins param. O sistema imunológico entra em colapso. Órgãos vitais se atrofiam. A circulação sanguínea desacelera. O volume de sangue diminui. Doenças infecciosas como febre tifóide, tuberculose e cólera tornam-se epidêmicas, matando milhares.

É impossível se concentrar. As vítimas esqueléticas sucumbem a um retraimento mental e emocional. Não querem ser tocadas ou movidas. O músculo cardíaco se enfraquece. As vítimas, mesmo em repouso, estão em estado de falência cardíaca virtual. Feridas não cicatrizam. A visão é prejudicada por cataratas, mesmo entre os jovens. Finalmente, atormentadas por convulsões e alucinações, o coração para. Esse processo pode durar até 40 dias para um adulto. Crianças, idosos e doentes morrem mais rapidamente. Esse é o futuro que Israel preordenou para os dois milhões de pessoas em Gaza.

Mas não é esse o futuro que os israelenses veem. Eles veem o paraíso. Eles veem um Estado judeu etnonacionalista onde os palestinos, cuja terra eles roubaram e ocuparam e cujo povo submeteram e forçaram a uma existência de apartheid, não existem. Eles veem cafés e hotéis surgindo onde milhares, talvez dezenas de milhares, de corpos jazem sob os escombros. Veem turistas se divertindo na orla de Gaza, uma visão reforçada por um vídeo gerado por inteligência artificial e publicado nas redes sociais pela ministra israelense da Inovação, Ciência e Tecnologia, Gila Gamliel. É como Gaza pareceria sem palestinos, ecoando o vídeo absurdo gerado por IA postado por Donald Trump.

No novo vídeo, israelenses despreocupados comem em restaurantes à beira-mar. Iates de luxo estão ancorados no Mediterrâneo cintilante. Hotéis reluzentes e torres comerciais, incluindo uma Trump Tower, pontuam a orla. Bairros residenciais atraentes se erguem onde agora há montes quebrados e irregulares de concreto. O vídeo mostra Benjamin Netanyahu e sua esposa, Sara, bem como Trump e Melania, passeando pela orla.

Gamliel, como outros líderes israelenses e Trump, usa cinicamente o termo “emigração voluntária” para descrever a limpeza étnica de Gaza. Isso omite a escolha brutal que Israel realmente oferece aos palestinos — sair ou morrer.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, pediu uma “anexação de segurança” do norte da Faixa de Gaza e prometeu que Gaza se tornará uma “parte inseparável do Estado de Israel.” Ele fez as declarações em uma conferência no Knesset [parlamento israelense] chamada “A Riviera de Gaza — da visão à realidade”, que apresentou propostas para a construção de colônias judaicas em Gaza. Smotrich disse que Israel “realocaria os gazenses para outros países” e que Trump endossava o plano.

O ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, que uma vez propôs lançar uma bomba nuclear sobre Gaza, declarou que “toda Gaza será judaica.” O governo israelense “está correndo para que Gaza seja apagada”, disse Eliyahu. Ele descreveu os palestinos como nazistas. “Graças a Deus, estamos eliminando esse mal. Estamos empurrando essa população que foi educada com o ‘Mein Kampf’.”

Assassinos genocidas abraçam fantasias de erradicar uma população nativa e expandir o seu Estado etnonacionalista. Os nazistas realizaram o seu ataque genocida, que incluiu fome em massa, contra eslavos, judeus do leste europeu e outros povos indígenas, descartados como Untermenschen, ou sub-humanos. Depois, colonos seriam enviados à Europa Central e Oriental para germanizar o território ocupado.

Esses assassinos não enfrentam as trevas que desencadeiam. Os imóveis de luxo à beira-mar sonhados por Israel jamais aparecerão, assim como a capital moderna exclusivamente sérvia, com sua catedral de cúpula dourada, edifício presidencial imponente, torre de relógio de 15 andares, centro médico de última geração e teatro nacional com palco giratório de 22 metros, nunca foi construída sobre as ruínas da Bósnia.

Em vez disso, haverá blocos de apartamentos feios, povoados pelos delinquentes habituais, protofascistas, racistas e medíocres que vivem nas colônias judaicas da Cisjordânia. Esses ultranacionalistas, que formaram milícias clandestinas para tomar terras palestinas e se juntaram ao exército israelense no assassinato de mais de 1.000 palestinos na Cisjordânia desde 7 de outubro, definirão Israel. Eles são a versão israelense dos 3 milhões de membros da Juventude Pancasilá — o equivalente indonésio das SA ou da Juventude Hitlerista — que, em 1965, ajudaram a executar o caos genocida que deixou entre meio milhão e um milhão de mortos.

Essas milícias marginais, armadas com armas automáticas fornecidas pelo governo israelense, lincharam Saifullah Musallet, um palestino-americano de 20 anos, que tentava proteger as terras de sua família há duas semanas. Ele é o quinto cidadão norte-americano morto na Cisjordânia desde 7 de outubro.

Depois que esses brutamontes israelenses terminarem com os palestinos, voltar-se-ão uns contra os outros.

O genocídio em Gaza sinaliza a abolição, para israelenses e palestinos, do Estado de direito. Marca a aniquilação até mesmo da aparência de um código ético. Os israelenses são os bárbaros que condenam. Se há alguma justiça distorcida neste genocídio, é que os israelenses, depois de acabarem com os palestinos, serão forçados a viver juntos na miséria moral.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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