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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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A Rússia e a União Europeia: Acabou-se o “tudo funcionando normalmente”

Da mesma maneira que Washington não é "capaz de acordos", nas palavras do Presidente Putin, a União Europeia também não o é, diz Lavrov: "Devemos parar de nos orientar em direção a parceiros europeus e de dar importância a suas avaliações"

Sergei Lavrov (Foto: Sputnik)
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Sergei Lavrov, o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, é o melhor diplomata do mundo. Filho de pai armênio e mãe russa, ele pertence a uma categoria à parte. Aqui, mais uma vez, podemos entender por quê.

Comecemos com a reunião anual do Clube Valdai,  o principal think tank da Rússia. Aqui podemos acompanhar a imperdível apresentação  do relatório anual do Valdai sobre "A Utopia de um Mundo Diversificado", com participação, entre outros, de Lavrov, de John Mearsheimer da Universidade de  Chicago, de Dominic Lieven da Universidade de Cambridge e de Yuri Slezkine da UCLA/Berkeley.

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É raro poder compartilhar um documento que representa um pico himalaico em termos de debate político sério. Temos, por exemplo, Lieven – que, meio que brincando, definiu o relatório Valdai como "tolstoiano, um pouco anárquico" - enfocando os dois maiores desafios entrelaçados da atualidade: as mudanças climáticas e o fato de que "350 anos de predominância ocidental e 250 de predominância anglo-americana estão chegando ao fim". 

Enquanto vemos "a atual ordem mundial se desfazendo frente a nossos olhos", Lieven percebe uma espécie de "vingança do Terceiro Mundo". Mas então - ai, de nós! - o preconceito ocidental se reinstala, quando ele, reducionisticamente, define a China como um "desafio".

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Mearsheimer, de forma precisa, lembra que vivemos sucessivamente em um mundo bipolar, unipolar e agora multipolar: com a China, a Rússia e os Estados Unidos, "A Política das Grandes Potências voltou à pauta". 

Ele, corretamente, avalia que, após a tenebrosa experiência do "século de humilhações, os chineses vão querer assegurar muito poder para si próprios". E isso irá preparar a cena para que os Estados Unidos empreguem uma "política de contenção altamente agressiva", semelhante à que usaram contra a União Soviética, que "muito possivelmente irá acabar em tiroteio". 

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"Confio em Arnold mais que na União Europeia" 

Lavrov, em seus comentários iniciais, explicou que, em termos de política real, o mundo não pode ser governado a partir de um único centro". Ele levou um bom tempo descrevendo o trabalho "meticuloso, longo e por vezes ingrato" da diplomacia.
Foi mais tarde, em uma de suas intervenções, que ele jogou a verdadeira  bomba  (começando em 1:15:55; em russo, dublado em inglês): "Quando a União Europeia fala como superior, a Rússia quer saber: é possível negociar com a Europa?"

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Em tom jocoso ele cita Schwarzenegger,  "que em seus filmes sempre dizia 'Confie em mim'. Eu, portanto, confio em Arnold mais que na União Europeia". 

O que leva ao clímax definitivo de sua fala: "As pessoas responsáveis pela política externa no Ocidente não entendem a necessidade de respeito mútuo nos diálogos. Então, é provável que, por algum tempo, tenhamos que parar de conversar com elas". Afinal de contas, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou publicamente que, para a União Europeia, "não há parceria geopolítica com a Rússia Moderna".

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Lavrov foi ainda mais longe em uma ampla e assombrosa, entrevista para rádios russas, cuja tradução merece ser cuidadosamente lida na íntegra.

Aqui vai apenas um dos trechos cruciais: 

Lavrov: "Façamos nós o que fizermos, o Ocidente sempre irá tentar dificultar as coisas para nós, nos cercear e minar nossos esforços em economia política, em tecnologia. Todos esses são elementos de uma única abordagem". 

Pergunta: "A estratégia de segurança nacional desses países afirma que eles irão agir desse modo". 

Lavrov: "Claro que sim, mas ela é expressa em termos que podem passar despercebidos a pessoas honestas, embora venha sendo implementada de forma decididamente ultrajante".

Pergunta: O senhor também seria capaz de expressar coisas de forma diferente do que o senhor realmente gostaria de dizer, certo?" 

Lavrov: "É exatamente o contrário. Sou capaz de usar uma linguagem que não costumo usar a fim de me fazer entender. No entanto, é óbvio que eles querem nos desequilibrar, e não apenas com ataques diretos à Rússia em todas as esferas possíveis e concebíveis, por meio de concorrência inescrupulosa, sanções ilegítimas  e coisas assim, mas também criando desequilíbrios na situação próxima a nossas fronteiras, evitando assim que nós nos concentremos em atividades criativas. No entanto, apesar dos instintos humanos e da tentação de reagir na mesma moeda, estou convencido de que temos que nos ater ao direito internacional". 

Moscou defende incondicionalmente o direito internacional - ao contrário do jargão das proverbiais "regras da ordem internacional liberal" papagaiadas pela OTAN e por seus lacaios, como o Conselho Atlântico. 

E aqui vai de novo um relatório incitando a  OTAN a "Endurecer com a Rússia", atacando as "campanhas russas de desinformação agressiva e propaganda contra o Ocidente, seu aventureirismo desenfreado no Oriente Médio, na África e no Afeganistão".

O Conselho Atlântico insiste em que esses irritantes russos mais uma vez desafiaram "a comunidade internacional com o uso de uma arma química ilegal para envenenar o líder da oposição Alexei Navalny. O fracasso da OTAN em pôr fim ao comportamento agressivo da Rússia põe em risco o futuro da ordem internacional liberal". 

Apenas tolos que acreditam na síndrome do cego conduzindo cegos não sabem que essas "regras" da ordem liberal são estabelecidas unicamente pelo Hegêmona, e podem ser instantaneamente alteradas dependendo dos caprichos do Hegêmona. 

Não é de surpreender, portanto, a piada que circula em Moscou: "Se você não ouvir Lavrov, você vai ouvir Shoigu". Sergey Shoigu é o Ministro da Defesa russo, que supervisiona todas aquelas armas hipersônicas com as quais tanto sonha o complexo industrial-militar dos Estados Unidos. 

O ponto crucial é que, apesar de toda a histeria engendrada pela OTAN, Moscou não liga a mínima, em razão de sua supremacia militar de fato. E isso enlouquece ainda mais Washington e Bruxelas. 

O que sobrou foram erupções da Guerra Fria que se seguiram ao incessante assédio prescrito pela RAND Corporation  tentando "desequilibrar" a Rússia em Belarus, no sul do Cáucaso e no Quirguistão, complementados com sanções a Lukashenko e a outras autoridades do Kremlin pelo "envenenamento" de Navalny.

"Não se negocia com macacos" 

Isso que Lavrov deixou bastante explícito foi produto de uma longa preparação. A "Rússia Moderna" e a União Europeia nasceram mais ou menos à mesma época. Eu, pessoalmente, vivenciei esse nascimento de forma bem extraordinária. A "Rússia Moderna'' nasceu em dezembro de 1991 - quando eu estava na estrada na Índia, depois no Nepal e na China. Quando cheguei em Moscou pela Transiberiana, em fevereiro de 1992, a URSS não existia mais. E então, voando de volta a Paris, cheguei em uma União Europeia nascida naquele mesmo fevereiro.   

Um dos líderes do Clube Valdai corretamente argumenta que o ousado conceito de "uma Europa se estendendo de Lisboa a Vladivostok”, cunhado por Gorbachev em 1989, logo antes do colapso da URSS, infelizmente "não era sustentado por qualquer documento ou acordo".

E, sim, "Putin buscou diligentemente uma oportunidade de implementar uma parceria com a União Europeia e levar adiante uma reaproximação. Essas tentativas continuaram de 2001 até 2006".  

Todos nós nos lembramos de quando Putin, em 2010, propôs exatamente o mesmo conceito, uma única casa de Lisboa a Vladivostok, e foi terminantemente repudiado pela União Europeia. É importante lembrar que isso aconteceu quatro anos antes de os chineses finalizarem seu conceito de Novas Rotas da Seda.

A partir daí foi ladeira abaixo. A última cúpula Rússia-União Europeia ocorreu em Bruxelas, em janeiro de 2014 – uma eternidade na política. 

O formidável poder de fogo intelectual reunido no Clube Valdai tem plena consciência de que a Cortina de Ferro 2.0  entre a Rússia e a União Europeia simplesmente não vai desaparecer. 

E tudo isso ao mesmo tempo em que o FMI, o The Economist e até mesmo aquele proponente da falácia de Tucídides admitem que a China já é, de fato, a maior economia do mundo.

A Rússia e a China compartilham  uma fronteira extraordinariamente longa. Os dois países estão agora engajados em uma "parceria estratégica ampla" complexa e multivetorial. Isso não aconteceu porque um estranhamento entre  a Rússia e a União Europeia/OTAN forçou Moscou a pivotar para o Leste, mas principalmente porque a aliança entre os dois vizinhos - um, a maior economia do mundo, e o outro, a principal potência militar - faz total sentido eurasiano - em termos geopolíticos e geoeconômicos.

E isso corrobora por completo o diagnóstico de Lieven quanto ao fim dos "250 anos de predominância anglo-americana".

Coube ao extraordinário analista militar Andrey Martyanov, cujo último livro considerei como leitura obrigatória em uma resenha recente, trazer uma avaliação deliciosamente devastadora do momento "Estamos fartos" de Lavrov:

"Qualquer discussão profissional entre Lavrov e uma ex-ginecologista [na verdade, epidemiologista] como von der Leyen, da qual participe o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha Maas, que é advogado e um verme partidário da política alemã, é uma perda de tempo. As "elites" e os "intelectuais" ocidentais estão, simplesmente, em um outro nível, muito inferior ao do mencionado Lavrov. Não se negocia com macacos, você os trata bem, providencia para que eles não sofram abusos, mas você não negocia com eles, da mesma forma que não se negocia com  crianças pequenas. Se eles querem ter Navalny como seu brinquedo, deixe que eles o façam. Há muito tempo venho insistindo que a Rússia comece a encerrar  suas atividades econômicas com a União Europeia. Eles compram hidrocarbonetos e alta tecnologia da Rússia, tudo bem. Fora isso, qualquer outra atividade deve ser drasticamente reduzida, e não deve restar    qualquer dúvida sobre a necessidade de uma Cortina de Ferro".

Da mesma maneira que Washington não é "capaz de acordos", nas palavras do Presidente Putin, a União Europeia também não o é, diz Lavrov: "Devemos parar de nos orientar em direção a parceiros europeus e de dar importância a suas avaliações". 

E não é apenas a Rússia que sabe disso: a maioria esmagadora do Sul Global também o sabe.

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